A família que se mudou para uma aldeia de Abiul em busca de qualidade de vida

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Internet, correios para receber encomendas e uma rede de serviços nas proximidades que lhes permitisse manter alguns dos hábitos foram requisitos para que o casal e a filha de nove anos deixassem o conforto de uma moradia em Mem Martins para começar uma nova etapa, a partir da pequena aldeia de Vale do Milho, na casa que foi dos avós paternos de Ana Ferreira.

“Existe sempre um antes e um depois”. A frase dá título a um livro, mas pode ser também o ponto de partida para contar a história de Ana Ferreira, de Filipe Guerreiro e de Carolina, a família que a 5 de Julho deste ano se instalou em Vale do Milho. Foi aí, na pequena aldeia da freguesia de Abiul, a cerca de dois quilómetros do centro da antiga vila, que deram início a um novo capítulo. Mas desengane-se quem pense que esta foi uma decisão impulsiva ou alimentada por narrativas utópicas. Muito pelo contrário. Nesta história, nada foi feito ao acaso.
Ana e Filipe precisaram de três anos para amadurecer a ideia e, neste caminho, ‘testaram’ aqueles que consideravam ser os requisitos mínimos para que o sonho não viesse a transformar-se em arrependimento. Ela, de 38 anos, é designer de comunicação e ele, de 43 anos, é engenheiro de software, ambos ao serviço de multinacionais. Desde a pandemia trabalham a partir de casa, com deslocações pontuais às empresas, pelo que a questão do emprego nunca os condicionou.
“Depois de a Carolina nascer, comprámos uma moradia no centro de Mem Martins [dista cerca de 4km de Sintra], mas no espaço de cinco anos aquela zona começou a ficar cheia”, conta Ana, querendo com isto dizer que aquilo que o local “tinha de bom” estava a desaparecer. A designer de comunicação, ao serviço de uma importante marca, destaca as mais-valias da proximidade a “todo o tipo de infra-estruturas”, num raio de “cinco minutos, a pé”, mas diz que o “reverso da medalha” trouxe outros dissabores. “Coisas simples como estacionar à porta da nossa casa” ou, até mesmo, entrar para a garagem de casa, passou a ser uma dor de cabeça. “Deixou de haver civismo”, lamenta. “Sentíamos que estávamos a ficar cada vez mais asfixiados no meio de um dormitório da cidade de Lisboa”, acrescenta Filipe, que reforça a afirmação com um dado concreto: “A Junta de Freguesia de Algueirão-Mem Martins tem, neste momento, a maior densidade populacional do país. Num curto espaço de tempo, cresceu imenso”.
Mas o “pontapé de saída” para a mudança aconteceu quando a filha foi abordada por um desconhecido, na altura da pandemia, que se aproximou do gradeamento da casa. O indivíduo procurou perceber se a menina, à data com quatro ou cinco anos, estaria sozinha em casa. Quando a mãe, da janela de casa, onde estava em teletrabalho, se apercebeu do sucedido, correu de imediato para o jardim, mas o homem já se tinha afastado, mal soube que Carolina estava acompanhada. “A minha filha, nem no próprio quintal, com as portas fechadas, pode estar”, pensou Ana naquela altura, apavorada com o sucedido.
“Foi crescendo a sensação de insegurança, a falta de identidade da zona”, contam, pelo que a designer levantou a questão ao marido: “Tens a certeza que vamos continuar aqui mais tempo?”.
A possibilidade de deixarem Mem Martins foi ganhando contornos, com o Vale do Milho no horizonte, onde os avós paternos de Ana têm raízes. O avô trabalhava na CP, em Lisboa, pelo que acabou por levar consigo toda a família [o pai de Ana tinha, nessa altura, 14 anos]. Manteve, no entanto, a casa na aldeia, onde regressava com regularidade, sobretudo para tomar conta das propriedades agrícolas.

“Sempre gostei disto, mas é evidente que na altura não havia possibilidades de ficarmos aqui”

Ana recorda-se dos Verões ali passados em miúda, numa ligação à aldeia que nunca se quebrou. “Nem que fosse só uma vez por ano, vínhamos cá”, se bem que “o meu pai vinha mais vezes”, especialmente na época das vindimas. “Sempre gostei disto, mas é evidente que na altura não havia possibilidades de ficarmos aqui”, confidencia.

Os requisitos para a mudança
A ideia de regressar às origens paternas de Ana deu os primeiros passos há três anos. Contudo, era preciso ver, in loco, se o Vale do Milho preenchia os requisitos básicos. “Começámos a vir cá de férias”, o que deu para perceber que “esta aldeia tem fibra [risos ao recordar a alegria do momento]”, isto porque “tanto ele como eu precisamos de internet para trabalhar”, explica Ana. “Durante três anos vimos se as nossas necessidades estavam cumpridas. Tínhamos de ter correios para receber encomendas e internet. O resto haveria de se resolver”, recorda. Chegaram a fazer encomendas online em hipermercados para a futura morada, para garantir que não haveria problemas nas entregas e a isto juntaram também a descoberta da própria região, feita com a ajuda dos pais de Ana, com o intuito de saberem se poderiam manter alguns hábitos.
“Deixámos de pensar em quilómetros, mas em tempo. Foi a nossa estratégia”, conta Filipe. O engenheiro de software percebeu que demorava tanto tempo a deslocar-se da antiga casa até ao Oriente, onde a empresa tem os escritórios, como a fazer a viagem de Pombal até ao mesmo local, também de comboio.

“Deixámos de pensar em quilómetros, mas em tempo”

A estes factores de peso juntou-se outro: as boas condições do centro escolar de Abiul, para onde Carolina iria entrar para o 4º ano de escolaridade, caso se mudassem. Até ali, a filha do casal frequentava um colégio privado de referência, próximo da casa onde viviam, mas Ana ficou surpreendida com as boas condições da escola da Abiul. Em Abril passado, depois de ter ligado para o centro escolar a pedir informações, foi convidada a visitar o espaço. “Fiquei encantada”, descreve, desde logo porque estava frio na rua “e o aquecimento estava a funcionar”. Além disso, “tem janelas grandes (as do colégio eram minúsculas), uma sala que é o dobro daquela que ela tinha, tudo limpo e arranjadinho”. Por outro lado, “a escola proporciona actividades de proximidade com o campo, que lá não tínhamos. Isso, em termos pedagógicos, é mais positivo, porque acaba por lhes oferecer uma aprendizagem diferente daquela que é dada numa redoma”, nota Filipe.
Analisados os prós e os contra, mudaram-se para Abiul a 5 de Julho, depois de terem vendido a moradia em Mem Martins. Na aldeia foram recebidos com a curiosidade própria dos lugares onde todos se conhecem, mas encaram isso com entusiasmo. “Não sabia que eles [avós e pais] eram tão queridos e tão conhecidos aqui no Vale do Milho e arredores. Toda a gente conhece os meus pais”, afirma Ana, ao mesmo tempo que relata episódios do passado, contados pelos novos vizinhos. “Já temos histórias para tudo”, acrescenta Filipe com boa disposição, ao lembrar-se disso. Acima de tudo, “fomos muito bem recebidos”. Aos muitos aspectos positivos que descrevem com natural entusiasmo, acrescentam ainda, por exemplo, a possibilidade de a filha poder agora brincar na rua, em segurança, de usufruírem melhor do tempo em família e de, até o clima, ser muito melhor, ao ponto de pai e filha terem deixado de espirrar, como acontecia. “Ganhámos uma nova dinâmica de família. Antes, cada um estava no seu canto e aqui, como a casa é pequena, estamos sempre todos juntos [Filipe refere-se também aos seus dois filhos mais velhos, de 18 e 15 anos, enteados de Ana]”.

A reacção da família e amigos
A reacção da família e amigos foi de inevitável surpresa e choque, convictos de que o casal se iria arrepender. Os discursos de advertência para os riscos, sobretudo pela distância dos grandes centros, deu lugar, pouco tempo depois, a uma crescente tranquilidade por parte de quem os ouvia, num discurso onde a felicidade era perceptível. “O que eu explico é o seguinte: eu demoro 15 minutos a chegar à A1 e, a partir daí, estamos a meia hora de Coimbra, de Leiria….ou seja, retirando estes 15 minutos, temos mobilidade para todo o lado, porque estamos numa zona super central”, argumenta Filipe. “Em Lisboa deixávamos de ir a muitos sítios pelo cansaço da deslocação, estacionamento…”, conta. “Aqui, a vida permite-nos ter a velocidade que nós queremos”, afirma.
Na casa dos avós de Ana não fizeram obras, porque o próximo passo é agora construir uma vivenda no Vale do Milho, com vista para a serra de Sicó (em Mem Martins usufruíam da vista sobre a serra de Sintra), mas ainda assim o casal adaptou a decoração da casa ao seu estilo e gosto pessoal.

“Aqui, a vida permite-nos ter a velocidade que nós queremos”

“Eu tive uma infância muito boa, em que passava metade do Verão na praia (a minha avó materna tinha uma casa em S. Martinho do Porto) e o resto do tempo era repartido entre as festas aqui na aldeia e o Montijo, onde a minha tia-avó tinha uma fazenda. Eu não parava em casa. Estava sempre na rua”, conta Ana, numa analogia com a possibilidade de oferecer também à filha este tipo de memórias.

A paixão pelo artesanato
A família estava ainda há cerca de um mês na freguesia, quando Ana decide participar como artesã nas Festas do Bodo de Abiul. “Antes de a Carolina nascer, eu já fazia artesanato, por desporto, e tinha inclusivamente um blogue”. Chegou a marcar presença em feiras, em Lisboa, juntamente com uma amiga, não pelo retorno financeiro, mas pelo prazer de criar peças originais. Com o nascimento da filha, deixou parte desta paixão em suspenso, mas em casa foi sempre testando técnicas. Fez costura, pintura em pastel e em gesso e chegou a integrar workshops de cerâmica, bijuteria e costura criativa.
Na altura das mudanças para a aldeia, deparou-se com uma caixa que lhe despertou o desejo de retomar a veia artística. Entretanto, soube que o Bodo de Abiul incluía um espaço para artesãos e perguntou à filha o que achava de, juntas, participarem na feira. A resposta de Carolina veio em forma de entusiasmo. Contactaram a Junta, de onde receberam luz verde e “boas condições” para avançarem, pelo que só faltava juntar material para expor. Com sentido de improviso, conseguiram reunir algumas peças, até porque, nesta estreia, o objectivo era sobretudo conhecerem pessoas e darem-se a conhecer. Carolina fez pulseiras, a mãe juntou-lhe mais algumas peças de bijuteria, criadas a partir de uma técnica de resina e com o nome “Mãe e Filha” apresentaram-se ao público. “Pusemos as peças à venda por um preço simbólico e correu muito bem”, de tal modo que “toda a gente perguntou se eu tinha página de facebook ou instagram”. Ana não quer voltar a parar e prepara-se agora para criar um projecto que inclua divulgação nas redes sociais e um website. À bijuteria (espera criar uma linha inspirada na vegetação da zona) espera juntar outras peças, como marcadores, cadernos ou note books, por exemplo.
A participação nas Festas do Bodo foi o primeiro para se sentirem membros activos da comunidade, mostrando-se disponíveis para colaborar em tudo o que puderem. Seja colocando as suas competências profissionais ao serviço de quem precisa, seja através do contributo voluntário para iniciativas na freguesia. “Queremos ter este sentimento de pertença à comunidade, que antes não tínhamos”, afirma Filipe.

*Notícia publicada na edição impressa de 19 de Setembro