A LER | Gestores de silêncios

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1968

Uma vida inteira num processo de doutoramento em gestão prudente de silêncios/palavras! Diz o povo e, quanto a mim, com muita razão que “Quem muito fala, pouco aprende”. Falar prudentemente, quando nos relacionamos com os outros é, neste mundo que se (des)orienta (quase) sempre de espada verbal em riste, uma arte, ou seja, produzir palavras sensatas e/ou ficar em silêncio, no calor de ataques verbais envenenados, constitui-se como um exercício de autocontrole que proporciona ganhos para todos os envolvidos, sendo que, quando esse equilíbrio não acontece, os problemas nas relações interpessoais ganham proporções de incêndios só extinguíveis com a poderosa e balsâmica chuva do perdão. Nessa circunstância, a palavra (ou apenas um gesto, uma mão que se estende, um abraço apertado) adquire a configuração de uma ponte que volta a unir duas margens. Essa ponte só pode ser construída com humildade, tijolo, infelizmente, muito raro nas construções emocionais do ser humano atual. A este respeito, registo o excecional exemplo do imperador e filósofo romano, Marco Aurélio. Ao caminhar pelas ruas de Roma, no meio do seu povo, um criado caminhava ao seu lado e tinha recebido dele, a única função, de sussurrar ao seu ouvido, sempre que alguém o aclamasse/elogiasse, a frase “És apenas um homem!”, assim, conseguindo libertar-se da tentação contínua de acreditar que era superior a todos os que o cercavam.
Na literatura universal encontramos, também, muitos exemplos de profunda aprendizagem deste tipo de gestão verbal/emocional, para gente de todas as idades e condições sociais, designadamente a obra “O Velho e o Mar” (1952), do autor americano, Ernest Hemingway. Conta a história de um velho pescador que, limitado pela idade avançada, se vê excluído da sua comunidade, contando apenas com um rapazito como verdadeiro amigo, que lhe dedica toda a admiração, respeito e carinho, devido à gratidão que o menino sentia por ter aprendido a pescar com o bom e velho Santiago. Por este motivo o amava tanto, fazendo questão de o ajudar sempre. Diante dessas circunstâncias, Santiago vê-se obrigado a provar que ainda é capaz de trabalhar e de superar as suas limitações físicas impostas pelo tempo. Auxiliado pelo pequeno Manolim, prepara seu barco e parte para alto mar em busca do seu sustento. Depois de muitas tentativas, finalmente consegue pescar um enorme peixe-espada, e com ele, trava uma árdua luta de três dias, envolvendo paciência, maturidade e “artimanhas”, até conseguir vencê-lo pelo cansaço. Durante todo este tempo, deixava vir à tona o diálogo consigo mesmo, onde, de maneira franca, expunha um misto de medo e coragem, bem como o seu desejo de superação. Também falava com o mar, com o céu, com as aves, com o peixe que pescara e, principalmente, com o seu próprio corpo já cansado e cicatrizado pela dura faina de pescador. À medida em que o combate se desenvolve, o leitor vai embarcando no monólogo interior de Santiago, nas suas dúvidas e angústias e, com as mãos húmidas de sangue, o pobre homem, apela para que a sorte não o abandone. Por fim, o peixe dobra-se à força do pescador. Mas a vitória (ou derrota?) não está completa – surgem os tubarões, e, em pleno alto mar, trava-se um duelo entre um homem exausto, mas ainda com forte poder de raciocínio e o instinto animalesco de ferozes tubarões, ávidos pela preciosa pescaria do velho Santiago.
A persistência e a coragem alicerçam o caráter do pescador. O amor e a saudade do menino que já não o acompanha naquele momento de desespero e de dor, aliados à necessidade de se impor diante dos outros pescadores, contribuem marcadamente para que o velho lute até ao limite das forças físicas. Ciente de que dera o melhor de si, entregou-se totalmente. Eis a vitória de velho Santiago. Os tubarões devoraram o seu precioso peixe-espada, deixaram-lhe apenas a cabeça e parte do esqueleto, todavia ele consegue chegar à ilha; já perto da noite, atraca o seu barquinho e vai para a sua cabana, deita-se e dorme. Pela manhã todos os pescadores ficam surpresos e questionam entre si – “Como é que o velho pôde pescar um animal tão grande?”.
Hoje, a maioria das pessoas, vivem à beira do afogamento num mar revolto de apelo ao consumismo, à exploração “do homem pelo homem”, da mentira em detrimento da verdade, o tristemente famoso “salve-se quem puder”. No entanto, histórias como esta, de Hemingway, podem e devem exercer algum tipo de influência positiva na vida de quem lê e reflete. É que o velho Santiago está tão presente nos nossos dias como no livro de Hemingway. Podemos vê-lo abandonado nas praças ou nas calçadas e bancos de jardim das cidades. Acima de tudo, encontra-se nos hospitais e nos Lares. A luta está em conservarmos, em cada um de nós, aquela faceta do menino Manolim que, mesmo sem ter condições, busca, dentro das suas possibilidades, amenizar o sofrimento do idoso. Na mesma linha, a maior riqueza humana está em procurarmos agir como o “Bom Samaritano” bíblico que, mesmo sem conhecer aquele estranho, ferido à beira da estrada, lhe tratou as feridas e ainda o conduziu a uma estalagem, pagando ao dono para que o tratasse até recuperar totalmente (Lucas 10, 25-37). Quantos velhos Santiagos, quantos “feridos”, à nossa volta, esperam que, na gestão do nosso tempo, encontremos alguns minutos para, até sem dizermos qualquer palavra, os apertemos naquele abraço especial, misturado com um sorriso?

graciosa.goncalves@sapo.pt

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Nasceu a 12 de setembro de 1969. Viveu na sua aldeia natal (Casal das Sousas, concelho de Ansião) até aos 18 anos. Vive em Pombal há 29 anos. Terminou a Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas (variante de Português/Inglês), na Faculdade de letras da Universidade de Coimbra, em 1991. Leciona desde o ano letivo de 1991/1992, tendo realizado o Estágio Pedagógico na Escola Jaime Cortesão (Coimbra) e tendo trabalhado dois anos letivos na Escola Pascoal José de Mello (Ansião). É professora do Quadro de Escola do Agrupamento de Escolas de Pombal, há 21 anos. É professora por vocação (foi no 8º ano que escreveu, numa composição escolar, sobre isso, pela primeira vez, de forma absolutamente consciente). Sente-se seduzida pela possibilidade de ajudar jovens a crescer por dentro, a descobrir-se, a trilhar o seu próprio caminho (do qual também é parte integrante, fazendo o seu próprio caminho, enriquecido pela jovialidade e irreverência deles), apesar das múltiplas adversidades. Ama tudo o que é inerente ao papel de mãe (desde mudar fraldas a lavar camuflados, passando por improvisar soluções para os mais variados problemas que surgem quando se tem três maravilhosos filhos de 27, 21 e 7 anos). É outra vocação, indubitavelmente. Ama escrever, ler um livro ou ver um filme que lhe ensinem algo ou que a façam chorar, por a resgatarem do pessimismo ou do descrédito em relação à raça humana, fazendo-a acreditar, mais uma vez, que é possível mudar o mundo. É uma sonhadora/idealista incurável, particularmente por acreditar, sempre, que Deus tem um projeto para a sua vida, assim ela saiba persistir na sua concretização.