Lembro-me de uma conversa que tive, poucos meses antes das últimas eleições autárquicas, com alguém que era então deputado na Nação (hoje, Secretário de Estado – dos melhores deste Governo). “Temos alguns bons candidatos que não darão bons Presidentes de Câmara, e temos maus candidatos que dariam excelentes Presidentes”. Esta frase sublinha uma diferenciação interessante: ser um bom candidato não significa que se seja verdadeiramente apto para um determinado cargo. Os processos eleitorais autárquicos obrigam os partidos políticos a enfrentar a hercúlea tarefa de arranjarem centenas e centenas de candidatos (de preferência, bons candidatos). Sabemos que cidadãos que sejam empáticos com o eleitorado e que, cumulativamente, sejam verdadeiramente capazes (e já agora, que estejam dispostos a sujeitarem-se à forte exposição que uma candidatura exige) não abundam. Esta verdade lapalissada coloca aos partidos um angustiante dilema: devemos escolher um tipo empático, mas incapaz, ou alguém mais apagado, mas competente?
Apesar de reconhecer que o perfil dos autarcas tem vindo a melhorar, pelo que me é dado a observar, a decisão é esmagadoramente tomada (sem dúvida nem tormenta) no sentido do porreiraço obtuso, em detrimento do macambúzio habilitado. E compreende-se: o taciturno, mesmo que seja muito apto, se não conseguir falar ao coração dos votantes, nunca será eleito. Por outro lado, o popularucho, como é capaz de congregar simpatias (votos), é um potencial ganhador de eleições. Por isso, mais do que a solidez e consequência das propostas políticas, interessa que os candidatos sejam figuras cativantes.
Não é de agora que a política tem avocado para o seu seio gente que se notabilizou noutras áreas de actividade que, pela sua natureza, são conglutinadoras da atenção das massas: cinema, televisão, música, desporto. No outro lado do Atlântico esta prática já tem décadas. Nos Estados Unidos, Ronald Reagan, depois de uma carreira de galã nas telas chegou a Presidente. Arnold Schwarzenegger, após décadas a esmurrar malta no grande ecrã, conseguiu fazer-se eleger Governador da Califórnia. O próprio Trump chegou à Casa Branca depois de apresentar o popular programa de televisão Shark Tank (para além das parangonas na imprensa “cor-de-rosa”). No Brasil, Gilberto Gil foi Ministro da Cultura, Romário foi Senador e Jardel, deputado estadual. No Velho Continente, este fenómeno tardou, mas chegou. Os casos mais emblemáticos são os dos comediantes Volodymyr Zelensky e Beppe Grillo. Zelensky é o actual Presidente da Ucrânia. Celebrizou-se através de uma popular série televisiva na qual corporizava e satirizava o papel do cargo que viria a ocupar. Grillo fundou o mixórdio-ideológico Movimento 5 Estrelas com que fez abanar os alicerces do sistema partidário de Itália. Em Portugal, a deprimente caixa de Pandora da escolha do candidato-celebridade, começou a abrir-se timidamente em 2009, com a candidatura do futebolista Marco Caneira à Junta de Freguesia de Almargem do Bispo em Sintra, tendo depois continuidade em 2017 com a cançonetista Ágata, candidata à Câmara Municipal de Castanheira de Pêra. Ambos perderam. Talvez porque, tanto um como outro, não beneficiassem de “tempo de antena” suficiente para que se consolidarem como candidatos “credíveis”.
Apesar dos maus resultados eleitorais do Marco e da Ágata (Maria Fernanda, para os mais próximos), algumas forças políticas parecem não ter abandonado a ideia. O PSD de Rio já anunciou para estas autárquicas uma comentadora televisiva, um ex-jogador da bola (dos bons) e um ex-árbitro. O CHEGA de Ventura (ele próprio beneficiário da popularidade que lhe granjeou o comentar de penáltis com eloquência) já anunciou um apresentador de televisão como candidato. Será legítimo questionarmo-nos se se trata de um fenómeno pontual e passageiro ou de uma trajectória. O facto da estridente apresentadora (e apreciadora de euros) Cristina Ferreira ter admitido que não enjeitaria a possibilidade de um dia se candidatar à Presidência da República, poderá levar-nos a pensar que isto é apenas o início. Se o for, significa a definitiva infantilização do eleitorado por parte dos agentes políticos e a assunção de que a política (que rege as expectativas e anseios da nossa vida) se pode vender como se de um champô ou de um detergente se tratasse.
Por cá, na falta de celebridades artístico-futebolístico-televisivas, o “sofisticado” intelecto politiqueiro encarregou-se de criar as suas próprias notabilidades, adequando o estratagema ao pendor provinciano da nossa micro-sociedade. COMO? SIMPLES! Através de jigajogas primárias de apropriação do movimento associativo, como se de uma vulgar rameira se tratasse. E as associações, como reagem a estes despudorados e lascivos avanços? Umas (poucas) mantêm-se firmes no seu propósito de servir a sociedade com independência. Outras (muitas) cedem: umas por entenderem ser a única forma de manterem as suas actividades e dinâmicas. Outras porque são isso mesmo: UMAS RAMEIRAS!
Porque será que estes tipos insistem em tomar-nos por PARVOS? Talvez porque na realidade o sejamos. CONVICTAMENTE!!!
Aníbal Cardona
Consultor/Formador
[Artigo publicado na edição impressa de 20 de Maio]
*O autor deste artigo acha que se o novo acordo ortográfico tivesse sido concebido pela célebre Senhora Dona Dolores Aveiro, não seria tão mau.