Armando Pereira, o director de obras que foi cônsul de Portugal na Costa do Marfim

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Armando Pereira só sabia fazer estradas e auto-estradas. E fê-las em vários países: França, Vietnam, Camarões e Costa do Marfim. Mas a sua especialização em obras e a falta de conhecimentos em “papelada” não o impediu de ser cônsul de Portugal, cargo que assumiu durante 25 anos por recomendação do presidente da República da Costa do Marfim, na altura Félix Houphouët-Boigny.

Mas voltemos ao início. Armando Pereira ou Armando Guerra, como é mais conhecido, nasceu e cresceu no lugar de Matinho, em Santiago de Litém. Aos 18 anos, após terminar o 7.º ano de escolaridade, emigrou para França em busca de uma vida melhor, como fizeram tantos outros da sua geração. Daí, e sempre ao serviço da mesma empresa, viajou para o Vietnam, Camarões e, mais tarde, Costa do Marfim, onde viveu quase 40 anos.

 

Armando Pereira já disse aos seus familiares para, quando chegar o dia e a hora da sua ‘partida’, lhe vestirem este fato encarnado para honrar o seu Benfica pela última vez

“A COSTA DO MARFIM ERA UM PARAÍSO”
Chegou à Costa do Marfim em 1966 como encarregado geral de obras, para ser responsável pela construção de uma fábrica em Bouaké. Depois de aterrar em Abidjã, entregaram-lhe um carro para percorrer os 400 quilómetros de distância até Bouaké. Sem GPS, mapas ou sequer sinalização que lhe indicassem o caminho, valeram-lhe as indicações de um cidadão que o acompanhou na longa viagem feita por “estradas e caminhos em terra batida”. “Na altura ainda não havia auto-estradas”, recorda Armando Pereira.
Muitas das estradas daquele país seria ele a fazê-las nos anos que se seguiram. Primeiro ao serviço da empresa que o levou até à Costa do Marfim e, mais tarde, através da firma que fundou a 5 de Outubro de 1975.
E como surgiu a oportunidade de criar essa empresa? “Um dia, um secretário de Estado desafiou-me a criar minha própria empresa”. Mas o desafio não foi aceite imediatamente. “Fiquei reticente, com medo de não ter trabalho, mas ele garantiu que me daria trabalho e eu avancei”. E “felizmente nunca me faltou trabalho”, tanto que “a empresa que começou com seis trabalhadores, incluindo eu, foi crescendo e em 1980 já tinha 400 colaboradores”. “Em 1997/1998, quando me vim embora, a empresa tinha 817 trabalhadores e mais de 200 máquinas e camiões”.
“A minha política sempre foi mandar metade do que ganhava para Portugal e investir lá a outra metade”, conta Armando Pereira, que durante quase 40 anos que viveu e trabalhou na Costa do Marfim, onde executou “muitos loteamentos e estradas em consórcio com outras empresas”, assim como investiu numa fábrica para produzir materiais em betão pré-fabricado, a qual “foi um autêntico sucesso”, porque era inédita no país.
E o sucesso da sua empresa também se deveu ao bom relacionamento que mantinha com o então presidente da República costa-marfinense, Félix Houphouët-Boigny, que “chamava-me mon petit, isto é meu filho”.
E foi também devido a esta boa relação que se tornou cônsul da Costa do Marfim. “Quando Portugal quis reatar relações diplomáticas com a Costa do Marfim, o presidente da República de lá disse que gostava que fosse eu o cônsul de Portugal, porque era uma pessoa conhecida e da confiança dele”.
Foi assim o escolhido para cônsul de Portugal na Costa do Marfim, cargo que desempenhou durante 25 anos. Ao longo deste tempo, prestou auxílio a muitos portugueses no país e conseguiu que a TAP começasse a fazer um voo directo entre Abidjã e Lisboa. Estes feitos valeram-lhe em 1985 uma condecoração pelo então presidente da República Portuguesa, Mário Soares.
Mas “também fui condecorado pelo presidente da Costa do Marfim por ter feito muito bem pela comunidade portuguesa, pelas boas relações com a Costa do Marfim e por ter desenvolvido o comércio entre Portugal e a Costa do Marfim”.
“A Costa do Marfim era um paraíso, sobretudo para um caçador como eu”, recorda com saudade. Todavia, quase 40 anos depois de aterrar em terras costa-marfinenses, abandou o país que “tão bem me acolheu”. Dali voltou para França, onde tinha uma quinta, à qual se dedicou cerca de uma década e antes de regressar de todo a Portugal e para perto da sua família: a mulher, duas filhas, seis netos e quatro bisnetos, que permaneceram no concelho de Pombal, onde Armando Pereira vinha cerca de três vezes por ano.

“ACABEI HÁ UM MÊS O MEU ÚLTIMO PROJECTO DE VIDA”
“Agora, aos 87 anos, só quero paz e sossego”, afirma, adiantando que “passo os meus dias em São Simão [de Litém]”. “Tenho um tractor para fazer umas bricolas e vou cuidando dos meus animais: veados, pavões, fracas…”. Às quartas-feiras e aos domingos “vou dançar umas modas”.
Além disso, “adoro futebol, sou doido, maluco pelo Benfica”. Em tempos ainda ia ver alguns jogos ao estádio, mas entretanto “deixei-me dessas andanças”, porque uma vez “cheguei a casa em tronco nu” e “outras vezes andei a porrada”.
E aos 87 anos ainda tem algum projecto ou sonho para concretizar? “Não, acabei há um mês o meu último projecto de vida”. E que projecto é esse? “Mandei fazer uma residência nova ao lado da Igreja de São Simão de Litém, que será minha última morada”, revelou, adiantando em tom de brincadeira que “não alugo quartos”. “Agora, só me falta ir à agência de viagem tirar o bilhete, mas isso não fiz nem vou fazer. Quando chegar a hora vou, mas eu sou teimoso, não quero ir”. Ainda assim, já escolheu a roupa: quer ir de vermelho numa “última homenagem” ao seu Benfica.

Carina Gonçalves | Jornalista

*Notícia publicada na edição impressa de 28 de Agosto