Graciosa Gonçalves, Professora
graciosa.goncalves@sapo.pt
Li algures que a leitura é uma conversa incessante entre o livro que fala e a alma que responde. Não poderia estar mais de acordo, acrescentando, apenas, que esse diálogo construtivo é extensível às outras formas de arte para além da literatura, designadamente ao cinema. A propósito da importância da leitura como meio de nos posicionarmos criticamente perante o holocausto publicitário a que estamos sujeitos, sugiro a visualização de uma cena do filme “O Substituto” (2011), com Adrien Brody no papel do professor Henry Bates, a tentar demonstrar isso mesmo aos seus alunos desta forma clarividente: “Acreditar deliberadamente em mentiras. (…)’preciso estar linda para ser feliz’; ‘preciso de uma cirurgia para ficar bonita’. (…) Trata-se de um holocausto. 24 horas por dia, para o resto das nossas vidas. A energia que movimenta trabalha arduamente no nosso emburrecimento até a morte. Então, para nos defendermos e pelejarmos contra esse processo de emburrecimento do nosso pensamento precisamos aprender a ler, para estimular a nossa própria imaginação, cultivar a nossa própria consciência, o nosso próprio sistema de crenças. Todos nós precisamos desta habilidade para defender, preservar as nossas vontades próprias.”
O Amor nos Tempos de Cólera, romance de Gabriel Garcia Márquez, autor colombiano falecido em abril deste ano, considerado um dos mais importantes escritores do século XX e galardoado em 1982 com o Prémio Nobel da Literatura permite, no meu ponto de vista, alimentar essa linha reflexiva. Trata-se de uma história sobre a persistência inabalável no amor. Nas primeiras páginas conhecemos um casal, já de idosos, Fermina Daza e Juvenal Urbino, mas pouco depois descobrimos que Florentino Ariza nutre um amor de mais de 50 anos por Fermina, à qual jurou amor eterno (compromete-se a esperar por ela toda a sua vida, ou pelo menos até à morte do marido, Juvenal Urbino). A história segue a linha do realismo fantástico, característico deste autor, focando-se em múltiplas experiências que ligam, umbilicalmente, o amor, o envelhecimento e a morte. Este é o enredo que se desenrola no livro, mostrando as relações amorosas das personagens ao longo das suas vidas, conforme vão envelhecendo e chegando mais perto da morte ou mesmo encontrando-se, cara a cara com ela, nas circunstâncias mais inusitadas.
A opção narrativa de não seguir uma sequência lógica e temporal dos factos, com consequentes avanços e retrocessos no tempo, ao contar as diferentes trajetórias das personagens, muitas vezes histórias que seriam simultâneas, revela uma obra bem costurada, que não deixa o leitor perdido, e que surpreende, também pela atenção aos planos de pormenor, ora divertidos, ora tristes, mas que nunca deixa de encantar, seja com a doçura de um momento de amor, seja com a intensidade de uma cena de paixão (“Tinha de ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não era um meio para nada, mas sim um princípio e um fim em si mesmo.”).
Tanto o amor como a morte trazem coladas questões fulcrais, “Isso é mesmo amor? Qual a razão de ter de morrer?”. São perguntas das personagens que provocam identificação imediata no leitor. Entretanto, o essencial aqui é que o amor de verdade nunca morre, mesmo com todos os percalços da vida, ele pode ainda resistir: “Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado.” Florentino Ariza conquistou a minha admiração. Vejo-o como um modelo na gestão das calorias do coração, uma vez que o seu corpo, embora corroído pelas maleitas da velhice, serve de habitáculo a uma alma inocente e apaixonada, transmitindo um certo encantamento sobre a vida. Corporiza, assim, a leveza de um amor que é carregado até a velhice, como se de uma pena se tratasse, apesar de ter sido impedido por uma sociedade tradicionalista e conservadora, fazendo -o amadurecer e, por mais que outras mulheres se cruzassem com ele em experiências íntimas, ele nunca deixa de amar Fermina (“por cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias”).
A perseverança de Florentino, curiosamente, também cativou o produtor do filme, de 2007, com o mesmo título do romance: Scott Steindorff demorou três anos para convencer Márquez a ceder-lhe os direitos do livro, no sentido de poder produzir o filme. Steindorff dizia a Márquez que era o próprio Florentino e que não desistiria enquanto não conseguisse os direitos. Por sua própria iniciativa, Márquez convidou a cantora Shakira para escrever e interpretar duas canções para a banda sonora do filme, que é um bom contributo para consolidar a reflexão originada pela leitura.