Não é uma fotografia qualquer. É tua e minha. Foi captada num dia grávido de sentido. Ou melhor, numa noite amena em que, enquanto os capitães sonhadores de cravos vermelhos rumavam à capital ávidos de vitória, nós nos olhamos, sentados à mesa de mais um aniversário. Falamos da revolução das nossas vidas. Começou numa outra manhã de abril, longínqua. Quando os nossos olhos, plenos de juventude e de futuro, escancararam, de par em par, a certeza indomável da porta da partilha. Do voto “na tristeza e na alegria, na saúde e na doença, até que a morte vos/nos separe”. Não era inteiramente verdade. Nitidamente, para além de qualquer morte se encontra este fio invisível que nos une. Tem muitos nós que o robustecem. “Indesatáveis”. Três são de carne e osso, da melhor qualidade e resistência. À prova de água e de fogo. Hoje escrevo sobre o primeiro livro que li da Isabel Allende. Comprei-o numa feira do livro, em 2000. Lembro-me bem, pois deixei-me seduzir pelo breve prefácio (também ele uma foto, em palavras, de um amor redentor), escrito pela própria autora: “Esta é a história de uma mulher e de um homem que se amaram plenamente, salvando-se assim de uma existência vulgar. Guardei-a na memória de forma a que o tempo a não desgastasse e é só agora, nas noites silenciosas deste lugar, que finalmente posso contá-la. Fá-lo-ei por eles e por outros que me confiaram as suas vidas, dizendo: toma, escreve, para que o vento não o apague”. De Amor e de Sombra (1984) é um romance que nos transporta para a realidade chilena durante a ditadura de Pinochet. Relembra-nos o valor da liberdade, o quanto a desigualdade pode ser desonesta, a ambição do poder e o que de atroz se pode com ele fazer. E fá-lo com suspense, com ritmo e com fervor. Numa escrita emocionada e emocionante. Porque a força maior neste livro é o amor. Um amor entre dois jovens que se confunde com o amor à pátria.
É um dos primeiros e, também, menos conhecidos romances de Isabel Allende no qual sobressai uma escrita ora sensual e telúrica, ora visceral e amarga. Esta última característica deve-se, sobretudo, ao humor negro da Autora, cujo sarcasmo se encontra bem explícito, logo nas primeiras páginas da obra, pela referência ao piedoso nome atribuído pela mãe da protagonista ao lar de idosos de que é proprietária, “A vontade de Deus”. A Mãe de Irene gere a instituição como se de um armazém de carcaças à espera da morte se tratasse, cuidando deles com a mesma consideração que poderia dispensar a uma pilha de fatos carunchosos, prestes a serem colocados no caixote do lixo. A ironia está presente no contraste entre o nome do edifício, revelador de um fatalismo conformista, e a rispidez com que as enfermeiras tratam os hóspedes. Por outro lado, o título da obra remete para um drama passional, onde o desenrolar do conflito demonstra como a cumplicidade em situações adversas fortalece uma união e ajuda a consolidar laços. A passionalidade é a imagem de marca da prosa de Allende, cuja precisão evocativa deixa no leitor uma marca indelével. A mesma característica explica, em grande parte, a simbologia, do título De Amor e de Sombra. Porque se trata, realmente de uma história de amor desenvolvida na “sombra” isto é, na clandestinidade.
Assim, chama-se a atenção para o violento “drama dos desaparecidos”, um episódio vergonhoso da história do Chile que diz respeito ao desaparecimento de milhares de presos políticos, “aqueles a que a Polícia política leva e não devolve”. O sentido da impunidade e a prepotência das forças da ordem, bem como o abuso de autoridade são explorados até à exaustão, sendo um bom exemplo, a situação
da família Leal, que valoriza o trabalho, acima de tudo, como símbolo da dignidade humana: o pai de Francisco, professor de Literatura é saneado e Javier, cientista e irmão de Francisco, é segregado do mercado de trabalho pelo simples facto de ter sido filiado num sindicato. Também a existência de uma multiplicidade de personagens com origens sociais muito díspares que, a dado momento, se cruzam em prol de um objetivo comum constitui um encanto adicional, sobretudo porque confere ao carácter de Irene, uma jovem de ascendência aristocrática, uma personalidade modulada que se vai aprofundando ao longo da narrativa, à medida que se envolve emocionalmente com Francisco e com as causas a que está ligado, notando-se um fluir das emoções, como um rio, aproximando-se da foz, ou seja em que todos os acontecimentos parecem conspirar para o harmonioso envolvimento dos protagonistas.A obra literária pode ser complementada com o filme de Elizabeth Kaplan (1996), com o mesmo título do livro, no qual se destacam as interpretações de Antonio Banderas e de Jennifer Connely a iluminar todas as sombras que possam subsistir no enredo deste sedutor e absorvente romance.
Graciosa Gonçalves, Professora