“Se os médicos têm estado na linha da frente no que à saúde diz respeito, os contabilistas certificados estiveram decididamente na linha da frente no apoio às empresas e à economia”.
As palavras são de Leonel Francisco, contabilista certificado, numa análise à importância do papel destes profissionais no apoio ao tecido económico com a chegada da pandemia. “Muitos empresários não sabiam o que fazer, como gerir a situação. Muitas vezes, fomos aquele psicólogo, aquele gestor, tudo fora do nosso âmbito de competências, que estivemos presentes a tentar serenar os ânimos e a manter a calma”, recorda aquele profissional. “Hoje, não fosse o papel dos contabilistas certificados e o Estado nem 10% dos apoios teria injectado nas empresas”, assegura. Mas para dar resposta a todas as solicitações, “algumas empresas de contabilidade viram-se obrigadas a contratar colaboradores para fazer face a este acréscimo de trabalho, o que implicou um aumento de gastos e, muitas vezes, sem retorno”.
Neste “esfoço adicional” resultante do novo cenário há ainda que ter em conta que “estávamos em tempo de fecho de contas, o que já por si é sempre muito trabalhoso”, lembra Leonel Francisco, “e vimo-nos obrigados a estudar uma legislação complexa e extensa para poder apoiar os nossos clientes”.
“Em termos de gestão de tempo e dedicação à profissão foi dos períodos mais difíceis, porque nos absorveu o tempo além da vida profissional”, conta o contabilista de Vermoil. “Além disso, as plataformas informáticas, nomeadamente o site da Segurança Social, foi um problema, sobretudo no que diz respeito à submissão de lay-offs, os quais obrigaram a condicionalismos absurdos nos ficheiros, o que levou a que empresas acabassem por receber os apoios tardíssimo”, critica. A par destas contrariedades, “tivemos de encerrar os escritórios e articular com os clientes a entrega de documentos, tentando salvaguardar a saúde de ambos, o que também não foi muito fácil”.
Contabilistas solidários
Em Março, e com o novo coronavírus a irromper em forma de avalanche, foram muitas as dúvidas a tomar conta do quotidiano das empresas. “A primeira grande incerteza surgiu com a doença em si. Para estruturas de gabinetes de contabilidade com poucas pessoas seria muito difícil conseguir levar a actividade se entrássemos em isolamento. Depois, a incerteza da perda de clientes”, conta Leonel Francisco, acerca do turbilhão vivido nos primeiros tempos. “Com o confinamento, as empresas que tiveram de encerrar deixaram de facturar e isso implicou falta de tesouraria nas suas contas. Apesar de estarmos na linha da frente no apoio às empresas, muitas acabaram por não resistir e fecharam mesmo portas, o que levou a algumas perdas de clientes”. A agravar este quadro, “a dúvida acerca do tempo que duraria o confinamento”. “Há empresas que até hoje nunca abriram, como bares e discotecas. Os contabilistas de entidades como estas não poderão estar a cobrar honorários ou, se o estão, será de valor reduzido, por uma simples razão, estas empresas não estão a funcionar”. Neste campo, o profissional vermoilense acredita que “os contabilistas certificados também têm sido solidários, no que à flexibilização de avenças diz respeito. Tudo isto gerou perda de rendimentos na nossa profissão, criando alguma ansiedade em relação ao futuro”, nota.
“os contabilistas certificados também têm sido solidários, no que à flexibilização de avenças diz respeito”
Reinventar os negócios
Leonel Francisco não tem dúvidas: “esta pandemia obrigou as empresas, em função de cada área de negócio, a proceder a alterações profundas nas suas formas de trabalhar”, decorrentes, em parte, do teletrabalho, mas não só. “Empresas de serviços a quem se aplicava o teletrabalho entregaram o equipamento de escritório aos seus funcionários para trabalharem a partir de casa”, mas as vantagens são diferentes, aponta. “O teletrabalho nunca se revestirá dos mesmos moldes do trabalho em contexto presencial nas instalações nas empresas”, considera. No entanto, e apesar das mudanças que trouxe, “o grande desafio nestas empresas” não passou pelo teletrabalho. “Ao mesmo tempo, as escolas encerraram e esses trabalhadores que vieram para teletrabalho ainda tiveram de ficar a tomar conta dos seus filhos e acompanhá-los nas actividades de ensino à distância”, o que resultou em “perda de produtividade no trabalho e défice de cobertura aos filhos”, constata aquele profissional. A estes constrangimentos acresce a “falta de apoio monetário que perderam por estarem em tempo real nas duas tarefas”.
Mas no meio desta tempestade houve também empresas que souberam “reinventar-se na forma como tentaram rentabilizar o seu negócio”. Para isso, criaram “alternativas que pudessem minimizar os prejuízos e, nisto, o sector da restauração foi muito criativo”, conseguindo, “de certa forma, manter os seus negócios”.
no meio desta tempestade houve também empresas que souberam “reinventar-se na forma como tentaram rentabilizar o seu negócio”
2021: o que aí vem?
Depois de um ano de 2020 cheio de desafios para contabilistas certificados e empresas, 2021 arrancou com um novo confinamento geral, o que deixa Leonel Francisco com expectativas pouco animadoras.
“Enquanto a pandemia não estiver controlada, a economia estará sempre debaixo de fogo, sempre a confinar, a desconfinar. Com o surgir de outras variantes do vírus, já percebemos que isto está para durar”.
Perante este quadro, e por muito que queira mostrar-se optimista, o profissional de Vermoil diz que “é difícil transmitir uma mensagem de esperança para muitas das empresas que estão nestas circunstâncias de não poder abrir. Para mantermos isto, o Estado terá de preparar uma verdadeira bazuca para sustentar estas perdas e não obrigar as empresas a encerrar portas. Porque, aí, serão às centenas para o fundo de desemprego. O Estado tem de decidir qual é a sua prioridade”, aponta.
“Com o surgir de outras variantes do vírus, já percebemos que isto está para durar”
Programas de apoio
Leonel Francisco faz uma “avaliação positiva” dos programas de apoio às empresas para fazer face às dificuldades surgidas em tempo de pandemia.
“O lay-off simplificado, apesar de todas as suas tramitações, o programa Apoiar, o Apoio à Normalização da Actividade, o Adaptar, a suspensão das execuções fiscais, as moratórias das rendas, os planos prestacionais, são e foram apoios muito importantes para sustentar a continuidade das empresas”, considera aquele profissional. Contudo, lamenta o contabilista, “muitos desses diplomas vieram carregados de excepções, que acabaram por deixar de fora muitas empresas”, ao ponto de considerar que alguns deles “são mesmo discriminatórios, porque se destinavam apenas a determinados sectores de actividade”. E exemplifica. “Repare, há empresas que tiverem de encerrar e não puderam aceder ao Programa Apoiar porque a sua actividade não estava contemplada e outras houve que não tiveram de encerrar e puderam aceder a esse mesmo programa. Isto não faz sentido nenhum”. Nesta avaliação, Leonel Francisco atribui, também, “nota negativa para apoios aos trabalhadores independentes e aos sócios-gerentes. O cabimento deste apoio foi extremamente reduzido, eu diria, abaixo do ‘limiar da pobreza’”.
“Além da complexidade da legislação, que é difícil de interpretar, e as exclusões que os diplomas conferem”, o contabilista aponta também “as plataformas informáticas para submeter os pedidos de apoio” e o “tempo que os apoios demoram a chegar às empresas” como outras das grandes dificuldades para aceder aos apoios. E a realidade salta à vista: “há empresas que começaram a receber apoios apenas oito meses após encerrarem as portas. Isto não pode acontecer se queremos salvar a economia”, adverte.
“há empresas que começaram a receber apoios apenas oito meses após encerrarem as portas”
Moratórias não resolvem
No caso concreto das moratórias, considera que “são um empurrar com a barriga do problema para a frente”, de tal modo que “irão ter um impacto na sobrevivência das empresas”. O mesmo não se aplica, no seu entender, ao programa Apoiar-Rendas. Leonel Francisco diz que a medida “veio contemplar um apoio a fundo perdido para pagamento de rendas para quem tivesse quebras significativas na facturação e, este sim, é um bom apoio”, embora lamente que, mais uma vez, se destine apenas a determinados sectores de actividade. “As moratórias serão pagas em duodécimos e isso é positivo. Contudo, isto só é possível sustentar se as entidades retomarem os seus negócios com registos consideráveis de aumento de actividade”, adverte. “E, aqui, tenho muitas reservas que isso venha acontecer. Daí que tenha havido muitos acertos nos valores das rendas por parte dos senhorios e alguns inquilinos aproveitaram para mudar o seu estabelecimento de local, tentando ganhar algum tempo e dinheiro”.