Falávamos de desenhos animados e eu acabara de dizer ao meu filho de oito anos que gosto muito do Mickey e da Minnie, ele, logo me disse “Mãe, acho que não está correto a mãe de um menino lá da escola usar uma camisola que tem um desenho do Mickey a fazer um gesto feio com os dedos, não achas?”. Claro que considero incorreto, mas a questão principal aqui não é a minha opinião, mas sim ter consciência plena de como um comentário destes (colado a uma questão) prova como as crianças estão extremamente atentas aos comportamentos dos adultos, tendo um sentido apurado do que é “bom” e do que é “mau”. Fiquei a pensar na incomensurável responsabilidade que temos, perante as nossas crianças e jovens (não só as da família, mas todas aquelas com quem possamos conviver e, por consequência, educar). Cada gesto ou ação, por mais insignificante que possa parecer, por exemplo um simples desenho numa camisola, (des)educa.
Não pretendo com isto culpabilizar ninguém, mas sim consciencializar/responsabilizar para o peso ético-moral que tudo o que fazemos tem na formação das gerações mais jovens. Como afirmava o ator norte-americano Will Smith numa entrevista recente, não importa tanto de quem é a culpa quando algo corre mal, mas sim a nossa responsabilidade para corrigir, ir por outro caminho, mudar de rumo e resolver, uma vez que, por exemplo, não é culpa de um jovem ter tido um pai alcoólico, mas é sua responsabilidade fazer tudo o que está ao seu alcance para eliminar algum trauma associado a essa situação e construir uma linha de vida diferente, livre de adições, produtiva. Assim, a culpa e a responsabilidade não caminham de mãos dadas, por mais que isso custe a compreender, pois quando alguém nos faz muito mal, queremos que seja punido, que sofra, que pague por isso, que seja essa pessoa a resolver o problema que criou, porém não é assim que funciona, é apenas a nós que cabe reorientar o nosso coração, a nossa mente e a nossa vida. Enquanto tomarmos a atitude de apontar o dedo aos outros, ficaremos sempre prisioneiros da vitimização. Quando estamos em “modo vítima”, não saímos do ciclo vicioso da dor, sendo que a estrada da autonomia e do autocontrolo é aquela que se trilha colocando o foco da responsabilidade da mudança apenas em nós (se formos cristãos, cremos que Jesus está connosco nesse processo, conduzindo-o- “Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, a verdade e a vida.”- João 14, 6; “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração”, Mateus 11, 29).
Neste momento em que terminei o estudo da novela “Amor de Perdição” (Camilo Castelo Branco) com os alunos de 11º ano, torna-se inevitável chamar a esta reflexão as personagens que são responsáveis pelo enredo desta conhecida obra da literatura lusa. O romance proibido de Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, com Mariana da Cruz a formar um triângulo amoroso marcado por um final trágico, é inspirada na vida do próprio autor, também ele protagonista de um amor impossível. «Escrevi o romance em 15 dias, os mais atormentados da minha vida.”, confessou Camilo Castelo Branco no prefácio à segunda edição da obra. A história relata a paixão entre Simão e Teresa, filhos de famílias inimigas, que preferem morrer a desistir do amor que os une. Mariana, que nutre um amor não correspondido por Simão, segue-o na morte. Esta versão portuguesa de “Romeu e Julieta” é uma confissão de revolta do próprio autor, preso durante um ano, por se ter envolvido num amor proibido com Ana Plácido, uma mulher casada. Uma eterna história de amor da literatura portuguesa, que é, fundamentalmente, um apelo à liberdade do amor contra as exigências sociais e morais do século XIX. Deste modo, as personagens da tríade amorosa assumem plena responsabilidade pelas suas escolhas, mesmo que isso lhes traga a mais terrível das consequências. Note-se que Simão assassina o primo e pretendente de Teresa em plena consciência de que seria punido pela justiça, pois tem a oportunidade de fugir, ajudado pelo ferreiro João da Cruz, após consumar o homicídio, mas fica e assume plenamente o seu ato e as respetivas consequências.
Hoje, infelizmente, um grande número de pessoas vive sem assunção de responsabilidade pelos seus atos: ou insistem em culpar tudo e todos à sua volta pelos seus problemas e dificuldades, ou movimentam-se numa “zona cinzenta”, de indefinição, incapazes de tomar decisões assertivas, inviabilizando qualquer crescimento interior e comprometendo os seus relacionamentos com os que os rodeiam, sendo que me fazem lembrar parte do poema “Anzol” cantado pela banda “Rádio Macau”, nos meus verdes anos:
Eu não sei se hei de fugir
Ou morder o anzol
Já não há nada de novo aqui
Debaixo do sol
Já me persegui por becos e ruelas
De horror, caminhos sem saída
Até que me perdi sozinha sem saber
De que cor vou pintar a minha vida.