Era um sonho antigo, acalentado desde a leitura e depois releitura de “A Cidade e as Serras”, uma das obras primas do romance português, escrita nos finais do século XIX, pelo magistral Eça de Queirós. E sucedeu por mero acaso, não programado, por convite de amigos, parceiros dedicados e divertidos em muitas viagens interessantes, em vários continentes. Mas o Douro, aqui tão perto, com as suas paisagens fantásticas, num outono seco e quente, que mais parecia o verão. E aqueles três dias também serviam para repousar, desstressar, apreciar a boa comida, complementada, obrigatoriamente, com os excelentes vinhos da região.
O hotel, ali à beirinha do rio Douro, era o sítio indicado para atingir aqueles objetivos, especialmente pela sua localização, bem perto de Baião. A recuperação da viagem fez-se com naturalidade, utilizando as infraestruturas normais existentes naquele tipo de hotel. E, no dia seguinte, a boa disposição e a excelente forma física eram obrigatórias.
A viagem fez-se de comboio, a partir de Mosteirô até à Régua e depois de barco, até ao Pinhão, sempre com o Douro presente ao lado e no meio, subindo as eclusas, construídas nas barragens que tornam o Douro navegável. Nas encostas que ladeiam o rio, as soberbas paisagens durienses, as vinhas plantadas subindo as encostas, denotam um trabalho humano notável, heroico mesmo. E o extenso lençol de água, refletindo o azul magnifico do céu, inspirando paz e tranquilidade, já reconhecidas por Jacinto, o herói de “A Cidade e as Serras” que, encantado, dizia para o inseparável amigo Zé Fernandes: “Que doçura, que paz…”.
A viagem de comboio, no regresso de Pinhão, até Mosteirô, passando por Tormes (hoje Caldas de Aregos – Tormes), fez-me lembrar a descrição da chegada de Jacinto, embora hoje o comboio circule a grande velocidade, bem diferente da do século XIX. Mas, a mesma frescura, a mesma paz, a mesma tranquilidade, naquele fim de tarde, com o Douro refletindo a beleza do pôr do sol e as luzes do começo da noite, qual espelho celestialmente brilhante.
No dia seguinte, a viagem até Tormes, para visitar a Casa Museu Eça de Queirós e para o obrigatório almoço queirosiano, mesmo ao lado, no Restaurante de Tormes. A subida desde as margens do Douro – o caminho do Jacinto – foi feita de automóvel, com motor de muitos cavalos. Apesar do acidentado da estrada e das curvas, nada fazia lembrar a viagem de Jacinto e do seu amigo Zé Fernandes, feitas numa “boa égua” e num “jumento”, num “caminho que não se alisara nem se desbravara desde os tempos em que o trilhavam com rudes sapatões ferrados, cortando de rio a monte, os Jacintos do século XIV”. Mas, já naquela época, os dois ilustres viajantes “esqueceram os nossos males, ante a incomparável beleza daquela serra bendita”. Também nós sentimos que “o ar fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força”.
A visita à Casa Museu permitiu conhecer a mesa onde Eça escrevia, de pé, encostado a um banco alto, as canetas e aparos que utilizava, a sua caligrafia, o modo como corrigia os textos, a sua biblioteca, a toga de mandarim que lhe foi oferecida aquando da publicação do livro com o mesmo título, o armário/arquivo inteligente e atual onde arrumava os seus papéis, o mobiliário e utensílios domésticos, condecorações, jóias, óculos (que tão bem o distinguem), as amplas varandas (“E esta varanda também é agradável – murmurou Jacinto mergulhando a face no aroma dos cravos”), fotografias familiares, terminando na adega, onde era produzido e agora pode ser provado o excelente vinho de Tormes. Ficámos assim com uma ideia bastante real de como era a sua vida em Paris, pela observação deste espólio, transportado de barco numa viagem acidentada, que provocou algumas perdas irreparáveis.
Depois o almoço no Restaurante de Tormes, mesmo ao lado da Casa Museu. A descrição, feita pelo Zé Fernandes, do primeiro almoço dum Jacinto esfomeado, abria-nos o apetite: “… a rija moça… pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!… Tentou, todavia, uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado: – Óptimo!… Ah, destas favas! Oh que fava! Que delícia! … – Deste arroz com favas nem em Paris…!”.
Também a descrição do vinho, que está inscrita no rótulo da própria garrafa, produziu o mesmo efeito: “o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo.”.
E depois de apreciar estas delícias, no caso dos nossos heróis ao jantar, na noite de Tormes, olhando o Céu, a conclusão teria que ser esta: “Na Cidade … nunca se olham, nem lembram os astros – por causa… dos globos de electricidade que os ofuscam. Por isso … nunca se entra nessa comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da Vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus… um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados… olham para os astros e os astros olham para eles.”
Na verdade, na realidade, há coisas que não mudam com o tempo, nem com o passar dos séculos…
manuel.duarte.domingues@gmail.com