DA ILUSTRE TERRA DO MARQUÊS | O microfone

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Em tempos de Covid-19, o microfone é um elemento tão precioso como a vacina, o tratamento para recuperação, o confinamento, o distanciamento social, a quarentena… Porque, é através do microfone, usando o microfone, que os mais altos dignitários da Nação, comunicam connosco, com os comuns dos mortais, para nos dizerem como, apesar da infelicidade em que vegetamos, ainda assim podermos ser felizes ou, pelo menos e na melhor das hipóteses, menos infelizes. São, realmente, tempos gloriosos, que nunca imaginámos poder viver.
Foi enternecedor ouvir o primeiro-ministro dizer, ao microfone e com uma postura de estadista, que, ao tossir, se deve privilegiar o cotovelo e não o espaço cibernético. Pensávamos que este tipo de aconselhamento seria da competência das autoridades de saúde do País e que o primeiro responsável pela governação, teria outras preocupações superiores, relativas à gestão da coisa pública, ao progresso global e ao futuro do País.
O presidente da república e o primeiro-ministro visitam uma fábrica de automóveis e, no fim, o segundo que é primeiro, aproxima-se do microfone e anuncia que o primeiro se deve recandidatar ao mais alto cargo da Nação, de modo a poder visitar a mesma fábrica no início do próximo mandato, ou seja, no próximo ano. Logo a seguir, o presidente disse que o primeiro-ministro respondeu bem ao ministro das finanças, quando disse, na Assembleia da República (AR), que os cerca de mil milhões de euros, para tapar o buraco do BES bom, só seriam transferidos depois da auditoria. O problema é que a transferência já tinha sido feita. A seguir o ministro das finanças deu a entender que o primeiro-ministro já sabia da transferência, aprovada em conselho de ministros. Uma embrulhada de todo o tamanho, que deveria fazer arrepiar os cidadãos / contribuintes / eleitores, que acham que a coisa pública deveria ser tratada com verdade, ética, moral, seriedade, respeito, honestidade, patriotismo…
Com o desconfinamento, o microfone começou a viajar ao ar livre. O primeiro-ministro vai tomar um café e, à saída, lá está o microfone. E ele não resiste e continua a dar conselhos aos pobres mortais, que sabem pouco. Depois vai almoçar com o presidente da AR e, à saída, lá está o microfone, através do qual, este último, diz que, se as eleições presidenciais fossem hoje, votava no atual, o que naturalmente enterneceu os cidadãos que tiveram a sorte de ouvir aquele discurso, vindo do microfone. Depois de uma reunião no Infarmed para avaliar a evolução da pandemia, seria naturalmente a responsável do governo pela área da saúde a transmitir as conclusões. Mas é o presidente que as transmite, funcionando, curiosamente, como porta voz do governo, o que tem sucedido em muitas outras ocasiões.
O presidente visita a Torre de Belém para evidenciar o alívio da quarentena. Claro que, à saída, ao ar livre, naquela paisagem magnífica do Tejo, lá estava o microfone e o presidente não resistiu e lá deu os mesmos ternurentos conselhos, acrescentando que só tínhamos andado cinco quilómetros nesta maratona e que era preciso ir devagar, com calma, além de outros conselhos muito importantes para o povo.
Parece assim que o microfone funciona como um íman para os políticos. Ao vê-lo, não resistem e tem que se aproximar para falar, mesmo que repetindo mensagens ou não tendo nada para dizer. E quando estão em presença dos microfones das televisões, das rádios, da imprensa, o êxtase ainda será maior! Não sei se o Zé Povinho tem pachorra para ouvir o mesmo discurso e os mesmos personagens todos os dias, porque serão dois castigos: a quarentena e os discursos. Ocorre perguntar: se não fosse a pandemia, os políticos falariam de quê?
E, é evidente que ficamos na dúvida: com tantos microfones, tantas entrevistas, tantas idas a programas de rádio, televisão e jornais, como é que têm tempo de governar, de estudar os problemas do País, de encontrar soluções, de preparar o futuro? Se não fosse a pandemia governariam? Felizmente vem aí o futebol e os atores políticos que nos divertem ou enfastiam diariamente, podem descansar. E, também os pobres microfones, andarilhos de populismos desvanecidos, terão algum descanso, para bem da saúde, da tranquilidade e da paz dos pobres mortais que vão sobrevivendo neste “jardim da Europa, à beira mar plantado”…

Manuel Duarte Domingues
manuel.duarte.domingues@gmail.com

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Natural de Viuveiro, Vila Cã, Pombal (1948), residente em Pombal. Licenciado em Controlo de Gestão pelo Instituto Superior de Contab. e Administ. de Coimbra. Contabilista e Consultor de Empresas desde 1977. Revisor Oficial de Contas desde 1993 (de Empresas públicas e privadas, cooperativas, autarquias, etc.). Fiscal Único no âmbito do Ministério da Saúde de diversos Hospitais EPE, desde 2002. Presidente do Conselho Fiscal da Vista Alegre Atlantis, SGPS, SA. Ex-Professor do Ensino Secundário (EICPombal) e do Ensino Superior (ISCAC e ISLA). Serviço público prestado: Oficial Miliciano de Administração Militar, Membro da Assembleia Municipal de Pombal e Presidente da Assembleia de Freguesia de Vila Cã. Cargos exercidos em associações: Vice-Presidente da Direção da A H B V Pombal; Presidente do Conselho Fiscal de: AICP–Assoc.Indust.Conc.Pombal; da Santa Casa da Misericórdia de Pombal; e do Sporting Clube de Pombal. Presidente e Membro da Comissão Revisora de Contas da Fundação Rotária Portuguesa. Cargo atual: Presidente do Conselho Fiscal da A. H. dos Bombeiros Voluntários de Pombal, desde 2005. Livros publicados: “DA ILUSTRE TERRA DO MARQUÊS…” – 1º Volume (2011, 2ª edição 2013); 2º Volume (2016), reunindo crónicas publicadas em jornais e revistas e outros escritos, destinando-se o produto da venda, integralmente, a Instituições de Solidariedade Social.