O convite deixou-me naturalmente surpreendido. Porque, quando se discorda daquilo que é publicado num jornal, a reação normal traduz-se na elaboração de uma resposta mais ou menos assertiva, mais ou menos violenta ou diplomática, mas, desejavelmente, fundamentada. As adjetivações são, obviamente diferentes, consoante as circunstâncias. Muitas vezes são menos agradáveis, impulsivas ou menos adequadas. Mas a sua publicação na página dos leitores é um direito inquestionável e este jornal cumpre-o. Só que, no que me diz respeito, a regra é a não existência de situações deste tipo, sendo a exceção algumas reações de natureza política, traduzindo diferenças de opinião que se respeitam.
A discordância em causa, surgiu a propósito de uma crónica publicada neste jornal em 4/2/2016, intitulada “Serviço Militar Obrigatório”. O Dr. Cândido Ferreira tomou conhecimento dessa crónica, na sequência de uma interessantíssima “Tertúlia do Marquês” em que foi palestrante, realizada em 18/10/2019 e referida neste jornal em 7/11/2019. A oferta do livro em que essa crónica foi publicada, lido com uma rapidez inabitual, permitiu-lhe discordar do seu conteúdo, tanto mais que os visados nessa crónica, eram os então candidatos à Presidência da República Cândido Ferreira e Marcelo Rebelo de Sousa. Nela afirmei que era normal o adiamento da entrada na tropa por razões académicas, porque isso também tinha sucedido comigo.
Mas, manifestou a sua discordância de forma curiosa: convidou-me e a um amigo e respetivas esposas para jantar na sua casa de Pousos, Leiria. Uma casa-museu com uma biblioteca fantástica e milhares de peças de um colecionismo variado, motivo de justa admiração. Depois de um excelente jantar por ele confecionado, acompanhado de excelentes vinhos da sua produção, veio a necessária explicação. Na sua opinião, o então candidato Marcelo Rebelo de Sousa, tinha-se efetivamente “baldado” à tropa no tempo da ditadura, através de expedientes dilatórios: a legislação então em vigor, permitia o adiamento na incorporação para concluir a licenciatura, mas não para fazer o doutoramento. Tratou-se assim de uma situação de favor, que a proximidade do poder permitia.
Além dos aspetos agradáveis e interessantes, foi uma oportunidade excelente para conhecer melhor o Dr. Cândido Ferreira, personalidade de referência, especialmente nos meios ligados à medicina, à política, à literatura e ao colecionismo, tanto em Leiria, como no País e no estrangeiro. Inovador no que respeita à nefrologia, precursor dos transplantes e dos tratamentos de hemodiálise, em que atingiu patamares qualitativos e quantitativos notáveis. Evidenciou uma dinâmica digna de realce, organizando encontros médicos em Leiria e intervindo em congressos médicos no país e no estrangeiro, apresentando comunicações e vários trabalhos científicos.
Politicamente ativo antes do 25 de Abril, filiou-se no PS em 1974, mas exercendo a sua atividade política de modo independente, sem se acomodar às diretivas partidárias, privilegiando as sua ideias, no que entendia ser melhor para o partido, mas, especialmente, para o País. Inteligentemente, optou pela carreira médica até à reforma, tendo sido candidato nas últimas eleições para a Presidência da República.
Notável a sua atividade literária. Publicou vários livros, versando diversos temas, especialmente sobre medicina e política. Vale a pena referir alguns aspetos, incluindo citações muito curiosas, seguramente a melhor maneira de resumir o seu modo de ser e de estar na vida e a forma assertiva como carateriza este povo e este país. Chama aos portugueses “treinadores de sofá” que clamam “contra a Direcção deste clube azarado a que chamamos Portugal”. Muitos “deploram pensões de miséria, sem terem descontado um tostão” e “protestam contra aumentos de impostos, que nunca pagam”. Pergunta: “Quantos não deploram o défice público e se encontram atolados em dívidas?” e “Quantos medíocres não triunfam nesta cultura do subsídio e da irresponsabilidade, que alimentamos?”.
Refere os seus primeiros tempos como médico: “Nessa época, nefrologia e necrologia, quase se confundiam. Ponto final em tal descalabro, entendeu ser seu dever semear diálises, inaugurar colheitas de órgãos de cadáver, estrear transplantações renais…”. Nas suas crónicas publicadas em vários jornais e revistas, Cândido Ferreira evidencia grande riqueza e subtileza na escrita, um sentido de humor notável e uma enorme capacidade de análise da realidade. Num dos livros, o autor justifica a sua publicação de modo curioso: “… mais que álbum de recordações, este livro pretende ser o grito de alguém que, avesso ao conforto da moda e à protecção das manadas, jamais se conformará com a profunda crise moral em que a sociedade actual mergulhou… o testemunho de um cidadão que recusa saltar da trincheira e, ao lado de tantos outros, não desiste de encontrar uma saída para o lodaçal em que o seu país se encontra atolado”.
Cândido Ferreira escreveu isto em 2005. Mas, tal como é atual a mordaz crítica queirosiana, também a sua crítica assertiva e bem-humorada, é bastante atual, aplicando-se perfeitamente aos pseudo idílicos tempos que alguns nos tentam convencer estarmos a viver…
Manuel Domingues
manuel.duarte.domingues@gmail.com