POMBAL A LER
Vieste em versão tripla. De mansinho. Sentia-te em cada alvorada incandescente. Movias-te a partir dos vários ninhos que compunham a nossa casa. Uma profusão de sons salpicados de sono. Havia um roçar doce de almofadas. Flocos de chocolate tilintavam nas taças pintadas com flores encarceradas. Odor macio de leite quente vertido, à pressa, na caneca “Pai, és o meu herói”. Arrulhar de pombos no telhado a adivinhar a luz do dia a escorrer, com vagares, a saciar vazios. O tiquetaquear da lâmina de barbear em sinfonia com o esvoaçar de um pardal assustado. Bicadas incessantes no vidro da janela. O duplo saltitar cristalino nas escadas de madeira. Livros e cadernos presos às tenras costas prenunciavam o germinar e o florir de novas palavras e números, as risadas das bonecas no recreio, a bola chutada entre sapatilhas gastas de gostar dela. Então, vieste, novamente. Aninhaste-te em mim. Dei-te colo e beijos na pele fresca de quem acabou de nascer e chamei-te, ao ouvido, “Meu amor” porque, “amor” e “família”, são sinónimos.
No dia 15 de Maio comemorou-se o Dia Mundial da Família, efeméride instituída pela Assembleia Geral da ONU, com o objetivo de chamar a atenção dos governos e da população mundial, em geral, para a importância da família como núcleo vital da sociedade. Não poderia estar mais de acordo quanto à centralidade da família numa sociedade que se deseja mais sã. Deste modo, “Memórias do futuro- narrativa de uma família”, é o livro da autoria de Daniel Sampaio, que hoje proponho. O narrador e protagonista tem 78 anos. Um dia é confrontado com uma situação comum a muitas pessoas da sua idade: o casamento de um neto. O convite para a festa desperta nele uma enorme felicidade, principalmente por não ter sido esquecido e leva-o a partir para uma viagem profunda pelos caminhos das suas memórias, seguindo uma ordem cronologicamente inversa, ou seja, começa por esse neto, Afonso, que o fez sentir velho pela primeira vez, aos 60 anos. Seguidamente, resgata a memória de Luísa, a colega de profissão, na escola onde ambos ensinavam e partilhavam projetos/sonhos profissionais. Depois, recua até aos 40 anos, à figura de Mariana, sua mulher e companheira de sempre, mas que, por esta altura da vida, o confronta com a fragilidade das relações humanas, principalmente do amor. Relação conturbada, que viveu altos e baixos, rodeada de traições. É aqui que, curiosamente, o próprio Daniel Sampaio aparece como personagem real deste romance, quando o casal precisa de aconselhamento. Por fim, chega aos 20 anos, à adolescência e à juventude, onde tudo se enraizou, para o melhor e para o pior, rememorando os tempos conturbados do salazarismo, das convicções políticas no seio estudantil e da educação que recebeu dos seus pais.
Quanto a mim, mais uma vez, Daniel Sampaio escreve um livro surpreendente tendo como núcleo as relações humanas (“Estamos juntos agora, lês uma revista e eu pela janela da sala vejo um par de namorados, devem ter vinte anos, não querem mudar o mundo como nós com essa idade, ele abraça-a como eu te abracei naquela tarde de estudo, quero dizer-te: vamos ainda construir mais memórias do futuro.”). Desta feita, o reconhecido psiquiatra e professor catedrático escreveu um romance, colocando como personagem principal um avô, a viver no ano 2028. Conduzido pelas várias etapas da sua vida, o leitor vai- se identificando com o percurso de uma qualquer personagem, quer seja a principal ou não. Com quase oitenta anos, o avô tem a consciência de que está no final da sua vida. No entanto, a relação com o seu neto continua próxima como quando este era pequeno. A importância dos avós na vida dos netos é aqui realçada pelo autor. Este é um tema que lhe é muito querido, pois já o explorara num outro livro intitulado “A Razão dos Avós”, que também recomendo.
Graciosa Gonçalves, Professora
graciosa.goncalves@sapo.pt