Ficar, o avesso de partir

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Graciosa Gonçalves, Professora
graciosa.goncalves@sapo.pt

Casa Varela. Projeto “Ruturas”. Janelas vestidas de fotografias, a preto e branco. Claramente, as cores da emigração (um misto de esperança numa vida melhor e de dor, pelos que ficam e pelas difíceis condições de vida/trabalho no país onde se chega). Uma pergunta interpela-me: “Reconhece alguma destas crianças?” Sim, em boa parte, eu fui uma delas, embora só tenha estado em Paris, com 6 anos, para visitar o meu pai que para lá emigrara em 1964. Porém, repito, sou uma delas, ou melhor, sou irmã delas, pois cresci numa aldeia órfã de homens. Eu, quase órfã de pai, já que só o via nos escassos dias de férias em que a mala de viagem se abria, mágica, como uma vez em que tive por presente uma malinha de verniz vermelho e branco que durou toda a minha infância. Este é, direi, o avesso da história que tão bem ali se (re)contou pela dramatização, pela música, pela dança e pelas imagens, nos serões do Bodo. Aqueles iam em família, muitos, como o meu pai, arriscaram “ir a salto” sozinhos (pagando a um “passador”), trabalhar na construção civil (emocionou-me o ator que trabalhava com colher e massa na janela do rés-do-chão, era o meu pai, como eu o vejo, desde sempre, graças aos relatos que toda a vida lhe ouvi), deixando a mulher e os filhos, provendo ao seu sustento com as chamadas ”remessas” de francos que mantiveram as famílias e alavancaram o desenvolvimento económico do nosso país nas últimas décadas do século passado.
Não se pense, porém, que a vida era fácil para nós que ficámos. Revi-me naqueles rostos dos meninos das “bidonvilles”. A minha mãe (como tantas outras mulheres) teve de cuidar dos campos e dos filhos, de sol a sol, gerindo bem a casa para se fazerem poupanças (roupa e sapatos novos, só no Natal e na Páscoa), esperando, ansiosamente e com lágrimas nos olhos, o carteiro que teimava em ter a saca vazia. Mais um dia sem notícias, num mundo em que os beijos e abraços eram de papel de carta e não instantaneamente “sms” ou “facebookianos”.
Curiosamente, o que viria a ser França, Alemanha, Luxemburgo e Suíça para os emigrantes portugueses das décadas da segunda metade do século XX, fora nas décadas iniciais do mesmo século, o Brasil e os E.U.A.- terras de oportunidades e abundância. O Portugal do início do século XX é um país rural, pouco desenvolvido. O analfabetismo impera. Dentro destas condições, as pessoas de baixas habilitações têm a ambição de enriquecerem, ou de, pelo menos, não passarem dificuldades. É o caso de Manuel da Bouça, personagem que acompanhamos do princípio ao fim do romance, cuja leitura, hoje proponho: Emigrantes de Ferreira de Castro. Li-o, pela primeira vez, na adolescência, graças à Biblioteca Itinerante da Gulbenkian que chegava a Ansião, minha vila natal, uma vez por mês, fazendo as delícias dos mais jovens, nesse tempo em que os livros eram um luxo e em que eu fazia caderninhos de citações copiadas com gosto e paciência.
O protagonista é um homem movido pela curiosidade, mas não só. A necessidade e a ambição empurram-no para uma aventura com objetivos precisos, todavia de consequências imprevisíveis. Ele representa a escassez de escolaridade e de posses. Manuel da Bouça hipoteca, no presente, o que possui em Portugal (terrenos/”courelas”) e separa-se da sua família (mulher e filha) para, em terras estrangeiras, entregar-se a uma quimera com o objetivo de alcançar um futuro mais risonho. Não era o único. Uma palavra aparece recorrentemente no texto para caracterizar o fluxo migratório (portugueses, italianos, russos…): “Rebanho”. Eram “ (…) lares inteiros que se deslocavam, famintos de pão e de futuro”.
Ferreira de Castro (1888‒1974), emigrante durante muito tempo no Brasil, faz da sua própria experiência, enquanto empregado em diversos trabalhos precários, matéria literária, à maneira neorrealista. As “dores” de Manuel da Bouça são, em parte, as do autor. Também ele sofreu com a divisão de classes que impedia os pobres de conquistar uma vida melhor: “Manuel da Bouça pensou: «O urso trabalha para o dono. É o dono que lhe dá de comer, mas dá-lhe de comer com o resultado do trabalho que o próprio urso faz. Se não tivessem preso o urso, ele podia comer sem precisar do dono. Quando eu trabalho para os outros, eu sou, salvo seja, como o urso. Mas, com certeza, no Brasil e na América, os homens não são como ursos, pois lá eles enriquecem em pouco tempo.” Emigrantes mantém, em 2014, infelizmente, total pertinência temática, apesar da sua primeira publicação ter sido em 1928. Manuel da Bouça é um homem em trânsito. É o pobre, o último do rebanho. Tal como o foram os meus tios Joaquim e Anastácio que partiram para o Brasil (escassos anos após a publicação do romance) e só voltaram uma única vez a Portugal. Tal como o será a minha filha que, em setembro, partirá para Londres em busca de formação superior de qualidade, na área que sempre quis, bem como de real oportunidade de integração no mercado de trabalho, algo que, no país que a viu nascer e desenvolver essa vocação, não passa de uma miragem.