Flores, poesia e chocolate

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Sente-se a Primavera. Como uma menina traquina, traz t-shirt, calções e sapatilhas para poder saltitar por aí, à vontade, com a brisa a brincar-lhe na frescura florida do rosto. O sol já obriga a usar chapéu. Já dá para espreitar alguns tufos de verde da horta que o vizinho anda a tricotar, aos poucos, pacientemente. É um tempo propício à poesia, cujo Dia Mundial se comemorou a 21 de março. Como escreveu Florbela Espanca, “Há uma Primavera em cada vida:/ É preciso cantá-la assim florida/ Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!”.

Joanne Harris, autora inglesa, idealizou a pequena aldeia francesa de Lansquenet-sur-Tannes e nela criou um cenário, aparentemente idílico, com pormenores naturais paradisíacos, para o seu romance “Chocolate”. Nesse momento, não imaginava, decerto, o sucesso que este viria a ter. Só em Portugal o livro vendeu mais de vinte e cinco mil exemplares e serviu de base a um filme de Lasse Hallström, com o mesmo título do livro, nomeado para três óscares da Academia.
Vianne é uma mãe solteira que chega à aldeia, com a sua filha, e ali abre uma chocolataria. Nos capítulos alternam a voz de Vianne com a do padre Reynaud (ao contrário do filme, no livro é ele que quer fechar esta loja das tentações), originando uma enorme tensão dramática que seduz o leitor, nutrindo a sua curiosidade.
Reynaud é apresentado como uma espécie de anorético. Recusa-se a comer e tortura-se a si próprio, ficando horas em frente à montra do talho. É repressivo e a sua severidade para com os que o rodeiam baseia-se no facto de se odiar profundamente.
É contra este pensamento e procurando desconstruí-lo que a meada narrativa da obra se vai desenrolando, defendendo-se os pequenos prazeres da vida, neste caso os gastronómicos, bem como o direito à diferença, numa minúscula aldeia, fechada ao que vem de fora, (também os ciganos, que ali aparecem, com as suas músicas e outro tipo de vida, são votados ao ostracismo), e que, de certa forma, põe em causa o poder instalado, através de elementos inovadores que quebram a ordem instituída.

Trata-se de um livro impregnado de cheiros, de sabores, de texturas associados ao riquíssimo potencial culinário do cacau transformado, por via das mãos mágicas da protagonista, em variadíssimas formas de chocolate e criativamente associado a outros ingredientes, nomeadamente especiarias, despertando o palato, a cada segundo.
Joanne Harris tem uma escrita muito peculiar, fazendo-nos «saborear» todo o seu enredo através de personagens complexas e bastante sui generis. Vianne é uma personagem absolutamente irresistível e, para quem já viu o filme, é quase impossível “descolar” a sua imagem da atriz Juliet Binoche que a encarnou na perfeição, particularmente com aquele sorriso, misto de inocência e malícia.

Assim, o leitor mais desatento poderia pensar que o conflito essencial é entre Vianne e Reynaud, porém ele habita, o interior de cada personagem e, consequentemente, de cada leitor, na vida real, pois, conforme escreve a autora “Todos nós nos encontramos divididos, interiormente”. Aliás, esta batalha interior, travada, continuamente, entre a luz e a sombra está expressa de forma exemplar no seguinte poema de Sophia de Mello Breyner:

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.

Continuam as noites e os poentes

Que escorreram na casa e no jardim,

Continuam as vozes diferentes

Que intactas no meu ser estão suspensas.

Trago o terror e trago a claridade,

E através de todas as presenças

Caminho para a única unidade.

Graciosa Gonçalves, Professora

graciosa.goncalves@sapo.pt