Segunda-feira. Semáforo vermelho no centro da cidade. Duas velhinhas encantadoras, aguardam para atravessar a passadeira. Uma sopra no olho da outra para ajudar a tirar algo que ali se alojou e incomoda a amiga. Gesto delicado de quem se predispõe a socorrer o outro, nos mais pequenos pormenores. Continuando a caminhar, a Natureza prova seguir esta mesma dinâmica: uma árvore larga as folhas, generosamente, tecendo e estendendo um tapete para a tão almejada chuva. Considero a diversidade de seres e de comportamentos que existem neste nosso planeta e também a essência solidária que nos une, lembrando, a este propósito, o “Poema do afinal” de António Gedeão:
No mesmo instante em que eu, aqui e agora,
Limpo o suor e fujo ao Sol ardente,
Outros, outros como eu, além e agora,
Estremecem de frio e em roupas se agasalham.(…)
A Natureza separa-nos.
E as naturezas.
A cor da pele, a altura, a envergadura,
As mãos, os pés, as bocas, os narizes,
A maneira de olhar, o modo de sorrir,
Os tiques, as manias, as línguas, as certezas.
Tudo.
Afinal
Que haverá de comum entre nós?
Um ponto, no infinito.
Esse “ponto”, que nos criou, assim maravilhosamente diversos, mas, quanto a mim, também contendo em nós a sua essência de Deus-Pai, configura a real possibilidade de podermos daz voz a essa semente de bondade, em nós plantada, patente, por exemplo, numa velhinha a tentar tirar um cisco do olho da outra ou no enorme grupo de pessoas que se juntaram para devolver um cachalote ao Atlântico, em Montegordo, no primeiro dia de 2018; por oposição, assistimos, boquiabertos, à surdez total a essa voz criadora, exposta na larga maioria das atitudes humanas denunciadas nos telejornais diários, desde a guerra no Iémen, aos milhões de refugiados a viverem em condições desumanas.
Em breves palavras, há sempre uma opção a fazer nas relações interpessoais: ou agimos como Sansão ou como Dalila. Sansão, cujo nome significava “homem do sol”, era um nazareno dotado de extraordinária força. Sendo um dos juízes bíblicos, a sua história está descrita no Livro dos Juízes (13-16) e no Novo Testamento (Hebreus 11,32). Deus chamou Sansão para libertar o povo de Israel que vivia dominado pelo Filisteus. Estes, que tinham um medo enorme da força dele, tentavam sem sucesso prendê-lo. Os governantes filisteus, sabendo da paixão de Sansão pela filisteia Dalila, aliciaram a jovem, com 1100 moedas de prata, a descobrir a origem da força invencível dele. Dalila amava-o, porém este amor era inferior ao que sentia pelo seu povo. Com o seu grande poder de sedução, ela tentou, não só desvendar o segredo da sua força, como também arranjar uma forma para que ele fosse dominado pelos filisteus. Por várias vezes, Sansão conseguiu resistir às investidas dela, dando-lhe falsas explicações para a origem do seu poder. Foi então que ela (não se sabe através de que artes) conseguiu saber o segredo da força dele: este disse-lhe que, se os seus cabelos fossem cortados, a sua força abandoná-lo-ia e ficaria fraco como uma criança. Adormeceu no colo de Dalila e esta, suavemente, cortou-lhe os caracóis dos cabelos. Acordado pela chegada dos Filisteus, acreditava ainda ter força, mas foi rapidamente dominado pelos soldados, que lhe perfuraram os olhos e o prenderam com algemas de bronze. Foi exposto e humilhado, publicamente, no caminho do templo de Dagôn, onde foi amarrado aos dois pilares que sustentavam o enorme edifício. A população juntou-se aos milhares para ver a sua derrota e este, num último esforço, pediu a Deus que lhe devolvesse a força, por instantes. Foi, então, que Sansão, heroicamente, fez ruir os pilares, causando a destruição do templo e, consequentemente, a morte dos Filisteus, de Dalila e dele próprio. A sua heroicidade/entrega a uma causa e a sua capacidade para amar é modelar. Há, no entanto, um importante reparo a fazer quanto à sua atuação e que nos há de servir de exemplo: nunca revelar os nossos planos e pontos de força antes de atingirmos os nossos objetivos, sob pena de essa revelação comprometer o sucesso dos mesmos.
Graciosa Gonçalves
graciosa.goncalves@sapo.pt