Naquele tempo o verão era grande e certo. Chegava em junho, no final do ano letivo, e prolongava-se até setembro, quando iniciava um novo ciclo de aulas.
Tão certo era, também, ao fim de semana, carregar a Volkswagen com o indispensável para umas noites de campismo selvagem e piqueniques no pinhal. Ainda hoje há um saudosismo natural, sem maquilhagens, quando vejo ou ouço um motor daqueles… E eu, que lido profissionalmente com as histórias de vida dos outros, sinto sempre que algumas da minhas páginas (e histórias) estão na nobre e sublime figura que é uma pão-de-forma. E era-o, ainda, ir às camarinhas. Não era exercício ao qual eu achasse grande piada (nem grande nem pequena, afinal não se consegue medir o tamanho nem quantificar a dimensão ou a amplitude). Sem alternativa, aprendi a descobrir as “bolas brancas” (como as apelidava) e divertia-me também a observar os púcaros que recolhiam o sangue dos pinheiros. Gostava dos cheiros. Ainda gosto. Certo era, também, o asfalto irregular, as crateras heterogéneas que obrigavam a uma verdadeira prova de perícias e contorno (ou desvio) de obstáculos.
Quando não íamos à praia, em casa uma das brincadeiras típicas era simular a viagem. Sentada no sofá, era eu quem conduzia a Volkswagen azul. Passados alguns minutos (se tanto), chegávamos ao Pedrógão e à Vieira. A duração da viagem dependia apenas da imaginação.
Escrevi, nessas praias, muitas histórias da minha vida, que conservo, fisicamente, apenas em fotografia – ainda daquelas de infindáveis rolos de 24 (as duas ou três últimas eram frequentemente disparadas para nenhum ou qualquer lado porque “o rolo já aqui está há muito” e, com uma pitada de sorte, se ficassem desfocadas seriam anuladas e não se pagavam). Décadas depois já me fiz acompanhar por folhas e uma caneta. Nasceram(-me), ali, muitas ideias e alguns projetos. Agora, enquanto observava as crianças que, um dia, fui.
Ainda hoje, cada nova incursão resulta sempre numa nova história: fotografada, escrita, observada ou conversada. Costumo dizer que o Pedrógão é “o lugar onde a magia acontece”. Assim o é, para mim. E assim o foi quando, há precisamente um ano, num ápice, uma língua de fogo reduziu uma extensa área do Pinhal a um cenário de cinza e de pó. Primeiro, foi a ameaça. Rápido deixou de a ser para se tornar numa triste realidade. Depois, vi a cidade escondida debaixo de um céu precocemente anoitecido de fumo queimado. A seguir somaram-se imagens de paisagens sumidas: nas redes sociais, na televisão, nas capas de revistas, no coração. Penso muitas vezes na Figueira, em Pedrógão Grande, onde se está a ReConstruir por amor: o local onde (re)descobri um novo amor por tudo o que é vivo e mexe – seja a vespa que visita a cada almoço, um enxame organizado, as ervas roçadas há pouco e que já estão viçosas, numa persistente vontade de existir, uma borboleta que ensina que as metamorfoses acontecem…
Por aqui, novamente depois: primeiro apaziguei-me, desconstruindo o luto de histórias ardidas; a seguir fui lá, agora a conduzir (sozinha, não só), mas não uma Volkswagen. O alcatrão é certo, como o verão da minha infância. O Pinhal era da cor do alcatrão. Não havia camarinhas nem púcaros. E escrevi uma nova história de vida: a minha e a da minha leitura do Pinhal e da praia. Todos escrevemos, cada pessoa à sua maneira. E quero acreditar que ainda podemos aprender muito sobre muito (educação ambiental, consciência cívica, participação, novas formas de voluntariado, empreendedorismo social, …) com o amor: o amor que, tal como na Figueira, permite ReConstruir e fazer acontecer.
Isabel Moio