Século XXI. Vinte e um! Sim, o analfabetismo existe… E não é apenas digital. É, antes disso, literal e funcional; antes disso porque a leitura, a escrita e o cálculo são ferramentas essenciais que contribuem inegavelmente para a conexão com a vida no dia-a-dia. É com letras e com números que acordamos, levantamos, vestimos, programamos, conversamos, partilhamos, interpretamos, calculamos, deitamos… Nanossegundo após nanossegundo, dia após dia – todos os dias. São estas ferramentas que nos libertam das amarras do obscurantismo e ajudam a combater a erosão do saber. Com elas, moldamo-nos e adaptamo-nos.
No entanto, o analfabetismo não é um problema de “hoje”: os números estão enraizados, vêm lá de trás. É um fenómeno com uma longa e persistente história, geneticamente herdado de um contexto económico, cultural e social cuja frieza das estatísticas nos revela um atraso (recorrente e acumulado) de cerca de 100 anos em relação à generalidade dos países da Europa.
Apesar dos esforços que tentaram contrariar esta tendência – desde as campanhas de alfabetização após a 2.ª Guerra Mundial aos Planos de Educação Popular e a outros projetos pioneiros na área –, este atraso tem permanecido, em jeito de património, até que em 2010 é instituído o Programa de Formação em Competências Básicas. No entanto, também esta medida não seria o antídoto para combater a situação, pois revogou o despacho que regulava a oferta extraescolar, nomeadamente o Curso de Alfabetização para Adultos. Impediu-se, assim, a criação de novos cursos de alfabetização que, gradualmente, dissipariam dependências e libertariam as pessoas desta angústia.
Se, como nos diz Paulo Freire, “a alfabetização é mais, muito mais, que ler e escrever. É a habilidade de ler o mundo, é a habilidade de continuar a aprender e é a chave da porta do conhecimento”, então podemos considerar que uma significativa percentagem da população portuguesa continua a ter dificuldade em “ler o mundo”. E isso assusta… Assusta porque, partilhando as palavras de Armando Loureiro, Presidente da Associação Portuguesa de Educação e Formação de Adultos (APEFA), “o analfabetismo é castrador de iniciativas e de vidas. Não saber ler nem escrever coarta a liberdade e deixa as pessoas reféns de vontades e de interpretações de terceiros, tornando-as dependentes e frágeis”. É assim que, face à elevada taxa de analfabetismo que atinge mais de 600 mil concidadãos portugueses (sendo um terço em idade ativa), e fruto de sucessivas reuniões, esta Associação lançou um repto: a criação de uma bolsa de voluntários que possam, perto da sua área de residência, em estreita sinergia com as autarquias e os movimentos associativos, dinamizar processos de aprendizagem de escrita, de leitura e de numeracia junto da população adulta.
A esta iniciativa de pendor nacional e com reflexo a nível regional e local, a Associação atribuiu a designação de “Percursos de Cidadania”. E se qualquer atividade especificamente construída e desenvolvida com as pessoas adultas deve ter como finalidade a transformação da ação dessas pessoas “tornando-as, progressivamente, mais libertas de condicionalismos culturais e sociais que, muitas vezes, funcionam como inibidores do exercício de uma cidadania planetária plena” (Alcoforado, 2008), que seja também possível transformarmo-nos ao contribuir para a transformação dos outros.