Naquele tempo o que hoje é o edifício da repartição de finanças, era uma grande casa amarela aos olhos de uma criança de 4 anos. Depois de subir dois degraus discretos, a porta de madeira abria-se para que quem por ela entrasse pudesse fazer a prova das vestes que levaria na procissão. Calhou-me um vestido comprido para a idade e que teve de ser ajustado com uma bainha. E uma coroa, um véu e um Menino. O Bodo chegaria, breve. E com ele, o cheiro a pipocas quentes e os balões que também não dispensava. Levava sempre um atado a um indicador ou num pulso, que dia após dia ia vendo desfalecer com falta de ar até sucumbir, amarrado a uma cadeira no quarto. Havia de já não ser Bodo e ainda ali tinha os restos daquele cadáver moribundo e irreconhecível. Era o tempo dos carrosséis lineares ao final da tarde, dos bailes da pérgula e das farturas quentes que se apoderavam da praça de táxis, à sombra das árvores. Os gigantones e o fogo-de-artifício eram também uma marca das Festas, mas impunham um estranho respeito e a ambos assistia, do lado de cá de uma janela.
Mais tarde, o Bodo foi(-me) o palco de carrinhos de choque, “Chuva de Estrelas”, fogo-preso, matraquilhos durante horas de perder o conto e pipocas ao som dos “Silence 4” na Praça dos Cereais. Ainda hoje consigo reconstruir com relativa nitidez a noite de 23 de julho de 1998, com “Borrow” de fundo. Foi o tempo da meia maratona e dos postos de abastecimento, no domingo de manhã, seguindo-se um convívio na fonte que por esta ocasião era mais luminosa.
Sempre senti que a cidade parava para viver estes dias e os felizes reencontros. E este ano, mais do que em qualquer outro, parou, de facto. Na sessão das 15h do dia 25 não estava mais ninguém a assistir ao documentário “Memórias das Festas do Bodo”. Embora
significativamente mais diminutas, em silêncio naquela sala revisitei também as minhas, ciente da estranha forma como algo invisível nos transformou as rotinas, as experiências e os contactos (e a falta deles). As roulottes de farturas convidaram à passagem, mas não à
paragem. Houve farturas, sem haver fartura. Ainda assim, o telhado verde-garrafa de ruas, um gafanhoto XXL a evocar excertos da nossa traça e um programa cultural espaçado e contido foram o carimbo “Em dias de Bodo”. Não houve fogo-de-artifício e isso também nos fez lembrar que vivemos presos em liberdade. Apesar de tudo, que as oportunidades culturais e a nossa História continuem a fazer-se, aliados à capacidade de reinventar palcos e espaços, contextos e cenários. Que mudem os tempos, mas não as vontades.
Isabel Moio