N(A) ESCOLA DA VIDA | Que mudem os tempos, mas não as vontades

0
1700

Naquele tempo o que hoje é o edifício da repartição de finanças, era uma grande casa amarela aos olhos de uma criança de 4 anos. Depois de subir dois degraus discretos, a porta de madeira abria-se para que quem por ela entrasse pudesse fazer a prova das vestes que levaria na procissão. Calhou-me um vestido comprido para a idade e que teve de ser ajustado com uma bainha. E uma coroa, um véu e um Menino. O Bodo chegaria, breve. E com ele, o cheiro a pipocas quentes e os balões que também não dispensava. Levava sempre um atado a um indicador ou num pulso, que dia após dia ia vendo desfalecer com falta de ar até sucumbir, amarrado a uma cadeira no quarto. Havia de já não ser Bodo e ainda ali tinha os restos daquele cadáver moribundo e irreconhecível. Era o tempo dos carrosséis lineares ao final da tarde, dos bailes da pérgula e das farturas quentes que se apoderavam da praça de táxis, à sombra das árvores. Os gigantones e o fogo-de-artifício eram também uma marca das Festas, mas impunham um estranho respeito e a ambos assistia, do lado de cá de uma janela.
Mais tarde, o Bodo foi(-me) o palco de carrinhos de choque, “Chuva de Estrelas”, fogo-preso, matraquilhos durante horas de perder o conto e pipocas ao som dos “Silence 4” na Praça dos Cereais. Ainda hoje consigo reconstruir com relativa nitidez a noite de 23 de julho de 1998, com “Borrow” de fundo. Foi o tempo da meia maratona e dos postos de abastecimento, no domingo de manhã, seguindo-se um convívio na fonte que por esta ocasião era mais luminosa.
Sempre senti que a cidade parava para viver estes dias e os felizes reencontros. E este ano, mais do que em qualquer outro, parou, de facto. Na sessão das 15h do dia 25 não estava mais ninguém a assistir ao documentário “Memórias das Festas do Bodo”. Embora
significativamente mais diminutas, em silêncio naquela sala revisitei também as minhas, ciente da estranha forma como algo invisível nos transformou as rotinas, as experiências e os contactos (e a falta deles). As roulottes de farturas convidaram à passagem, mas não à
paragem. Houve farturas, sem haver fartura. Ainda assim, o telhado verde-garrafa de ruas, um gafanhoto XXL a evocar excertos da nossa traça e um programa cultural espaçado e contido foram o carimbo “Em dias de Bodo”. Não houve fogo-de-artifício e isso também nos fez lembrar que vivemos presos em liberdade. Apesar de tudo, que as oportunidades culturais e a nossa História continuem a fazer-se, aliados à capacidade de reinventar palcos e espaços, contextos e cenários. Que mudem os tempos, mas não as vontades.

Isabel Moio

Partilhar
Artigo anteriorOPINIÃO | Em minoria só os melhores governam
Próximo artigoO PERFUME DA SERPENTÁRIA | O botão de desligar*
Embora os documentos legais a identifiquem como natural de Pombal, foi em Coimbra que respirou autonomamente pela primeira vez. Assim, desde o penúltimo dia de dezembro de 1982 assumiu um compromisso com a vida: aprender a ser. Quase duas décadas depois regressou à cidade do Fado e do Mondego para dar continuidade à sua formação académica na área de Ciências da Educação. Aprofundaria aqui o significado de outro pilar: aprender a conhecer. Começou a aprender a fazer em 2007, quando a socialização profissional lhe abriu as portas no ramo da Educação e Formação de Adultos, no qual tem trabalhado e realizado investigação. Gosta de “sair por aí” e observar e fotografar todas as esquinas. Reserva ainda tempo para a escrita, sentindo-a como um elixir lhe permite (re)descobrir uma energia anímica e uma força motriz nos cantos mais inóspitos aos quais muitos olhares não associariam qualquer pulsar. É, neste campo, autora de obras literárias individuais e de vários textos e poemas publicados em coletâneas. E é assim que lê, sente e inala o mundo, num permanente aprender a viver com os outros.