Naquele tempo tinha medo dos foguetes de lágrimas. Das figuras antropomórficas também. Refugiava-me em casa, esse porto que cria ser seguro, de ambos. Dos primeiros, por me transmitirem a sensação de deslizarem dos céus sobre os humanos. Dos segundos, por me parecerem sobre-humanos. E eram-no, de facto: maiores do que os humanos, vindos sabia lá de onde, abanicando as vestes que tapavam as ancas postiças.
Era tempo de pipocas quentes coloridas. De carrosséis. De balões que me atavam no pulso para não sucumbirem na atmosfera; em casa, prendê-los-ia a uma cadeira, onde acabariam por desfalecer dia após dia. Em tempos, foi-me tempo de procissão. Recordam-mo (não só, mas também) as fotografias. E estas avivam-me os quatro anos que tinha naquele verão, o calor daquele domingo e aquele vestido alugado numa daquelas casas entretanto debilitada e extinta, na zona histórica da Cidade.
Foi tempo de “Chuva de Estrelas”. De Cardal acima e Cardal abaixo. Da génese do gosto pelo folclore e pelo fandango, enquanto veículos de cultura e identidade nacional. Foi também tempo de poço da morte, onde matei a curiosidade sequiosa.
Hoje faz anos. Foi no dia 23 de julho de 1998. Silence 4. Antiga “Praça dos Cereais”. Ainda hoje esta data me é um ícone que cristaliza histórias acarinhadas e guardadas numa gaveta, em folhas adolescentes. Já não era tempo de carrosséis feitos de cavalos e demais estruturas apáticas, mas de carrinhos de choque, montanha russa e disputas de matraquilhos. De descobertas e emoções.
Mais tarde, foi tempo de expositores. E a leitura foi mudando; tem mudado. Nos momentos “mortos”, que por ali havia, foi tempo de “estudar” quem passava. Vi gente em passeio, famílias que se reuniam de uma emigração forçada ou opcional, jovens que entravam e saíam dos pavilhões sem objetivo maior. Tempo de descompromisso, de convívio, de viver, de estar. Sem relógio: era tempo sem tempo contado.
Era ainda (sempre o foi), como hoje, tempo de fartura. De música, de algodão doce, de ruas vivas, de copos mais meios cheios do que meios vazios (e de brindes), de cheiros, de jantares, de amor e humor. Tempo de fartura… sobretudo, daquelas que se comem, quentes, logo na véspera, quando as festas ainda não começaram.
Hoje, tenho medo. Não dos foguetes. Nem das figuras antropomórficas. Mas que um dia todo o legado deixe, genuinamente, de o ser. Enquanto isso, haja festa. E fartura.