Sou apreciador de arte exactamente com o mesmo tipo de critérios com que sou apreciador de vinho. Não percebo nada, mas gosto de beber. Assim como prefiro os vinhos do Douro em relação a outros (acabo por beber todos), no que concerne à pintura tenho um especial fascínio pela obra de Hieronymus Bosch. Os seus trabalhos são, maioritariamente, povoados por figuras tenebrosas e complexas, protagonizando cenas de pecado e tentação. A forma imaginativa e satírica com que Bosch representa os vícios e os temores do homem da Idade Média e das suas instituições (sobretudo de ordem religiosa) constitui uma magnífica representação (e fiel, diria eu) da obscura sociedade da época. Já tive oportunidade de contemplar algumas das suas obras ao vivo. Desde logo, o soberbo tríptico “As Tentações de Santo Antão” que faz parte do espólio do nosso Museu Nacional de Arte Antiga. Tive também o prazer de fruir outras duas das suas obras mais emblemáticas: “O Jardim das Delícias” e “Os Sete Pecados mortais” expostas no Museu do Prado em Madrid. MAGNÍFICAS!
Por um motivo ou por outro, ainda não visitei o Museu do Louvre em Paris. Do seu acervo faz parte a simbólica “A Nave dos Loucos”. A nave dos loucos é uma alegoria da cultura ocidental muito retratada tanto na pintura como na literatura e satiriza a arca da salvação, enfatizando a imperfeição humana. Este tema passado à broxa do génio e do escárnio de Bosch assume uma especial magnificência. Grosso modo, o artista apresenta as elites da época como uns grandes bardinas.
Lembrei-me destas coisas a propósito da proposta da deputada Joacine para a restituição aos países de origem do património das ex-colónias presente em território português. A parlamentar defende a sua tese como forma de “descolonizar” os museus e monumentos estatais. Podemos questionar a oportunidade mas, na minha opinião, não a validade desta proposta. Na realidade, é um tema já sobejamente debatido. Os casos mais conhecidos envolvem o British Museum de Londres, tal a quantidade de países que reivindicam a devolução de obras de arte, nomeadamente, a Turquia, o Egipto, o Benin e o Chile. Esta pressão já fez com que o museu organizasse palestras para esclarecer a origem de cada uma das peças em apreço e de como foram obtidas. Outros importantes museus europeus debatem-se com solicitações análogas, como por exemplo o Museu do Louvre de Paris, o Museu da América de Madrid e o Rijksmuseum de Amesterdão. Há um par de anos, o presidente de França, Emmanuel Macron, abriu portas para a devolução de obras de arte africana expostas em museus do país. A identificação destas obras de arte e a eventual ilicitude da sua obtenção foram objecto de um estudo patrocinado pelo próprio ministério da cultura francês.
A questão-chave para a resolução desta problemática compreenderá a definição objectiva do que poderemos entender como ilicitude na aquisição destas obras. Se por um lado, uma situação como aquela que se viveu durante a Segunda Guerra Mundial com o saque de obras de arte por parte dos nazis não parece deixar dúvidas em relação à ilegitimidade dos actos, as obras obtidas num cenário de colonização já me parece menos evidente. Desde logo pelas diferentes épocas, contextos e padrões com que se desenrolaram. No entanto, um processo com esta complexidade levanta mais algumas questões importantes: Se atentarmos à História da Humanidade apercebemo-nos que ela se fez de sucessivas conquistas e reconquistas. Neste prisma seria oportuno questionar se um território outrora conquistado não deveria ser devolvido? A geometria dos países será lícita? Quem são os originais e justificados possessores de cada território?
Considero que o meu país é uma “pessoa de bem”. Como tal, entendo que este assunto levantado pela deputada (agora verdadeiramente livre) Joacine é perfeitamente plausível e que as obras de arte cuja obtenção seja comprovadamente ilegal devem ser devolvidas. No entanto, parece óbvio que os critérios para a aferição dessa legitimidade deverão ser estabelecidos de forma independente, clara e objectiva por especialistas. Uma análise mais atenta da proposta da deputada sugere-nos que não é isso que propõe na plenitude. Aventa que a comissão para a identificação do património a ser restituído, deverá abranger “museólogos, curadores, investigadores científicos e ACTIVISTAS ANTI-RACISTAS”. Propor estes últimos “especialistas” é revelador de que Joacine tem a virtude de transformar uma proposta íntegra numa circunstância de compleição racial. Joacine vê racismo em tudo e sonha com racismo. Acredito que Joacine chame racistas a quem coma azeitonas pretas (e sexista. Azeitona é um substantivo feminino). NÃO SERÁ ELA UM BOM EXEMPLO DAQUILO QUE MAIS DESPREZA? Esta vertigem para a exiguidade é reveladora de que o Livre não faz testes psicotécnicos aos seus candidatos.
O seu “gémeo falso” André Ventura não enjeitou a oportunidade de vir a terreiro demonstrar que ainda não percebeu que a responsabilidade de ser deputado da nação é diferente de andar a comentar penaltys na televisão e brindou-nos com mais uma manifestação de tarouquice e populismo primário. Talvez Hieronymus Bosch não desdenhasse reservar lugares na sua Nave para estes dois palermas. Já agora, acho que se arranjaria também um lugarzito para aquele “perito” em História do século XX, o Abel Matos Santos, agora vice-presidente de um partido que ERA democrata-cristão. Acho que uma besta medieval não ficaria mal na barcaça.
Aníbal Cardona
Consultor/Formador
*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico deveria embarcar ele mesmo na nave de Bosch.
*Artigo de opinião publicado na edição impressa de 06 de Fevereiro