O Porto/Post/Doc Film & Media Festival é um evento dedicado ao cinema, principalmente documental, organizado pela associação com o mesmo nome, que se realiza anualmente na cidade do Porto. Por gostar de filmes, procuro sempre saber o que a cada ano se vai lá passar. Na edição de 2018, chamou-me a atenção um documentário sobre um homem difícil de adjectivar. Qualquer coisa entre o notável e o vil pantomineiro: Carlos Henrique Raposo. Desde logo pelo título do documentário: “O maior futebolista que nunca jogou”. Como para mim na altura, este nome talvez diga pouco à generalidade dos leitores. Mas valerá a pena sabermos um pouco sobre a vida deste “campeão”.
Carlos cresceu num dos bairros mais pobres do Rio de Janeiro. Ficou sem o pai muito cedo e, como para a generalidade das crianças pobres do Brasil, o futebol representa a única miragem de elevador social que têm à disposição. Na esperança de que o seu filho se tornasse futebolista profissional e poder trazer algum dinheiro para casa, a mãe inscreveu-o nas escolinhas do Botafogo, um dos maiores clubes do Rio de Janeiro. Apesar de não ter jeito para a bola, Carlitos tinha outros atributos que chamavam a atenção: era fisicamente mais alto e forte do que os outros miúdos. É comum no Brasil estas escolinhas de jogadores serem “sobrevoadas por abutres”. Gente sem escrúpulos que, quando algum dos garotos lhes chama a atenção (e já vimos que no caso do Carlitos não foi o jeito para a bola), oferecem aos pais “meia dúzia de patacas” para passarem a gerir as carreiras dos petizes. Se derem em jogadores, podem ganhar muito dinheiro. Se não derem, abandonam-nos. A pobreza extrema, fez com que a mãe do Carlitos assinasse o papel. É fácil de perceber o que aconteceu no caso do nosso herói. Mas o Carlitos, para além da “estampa” física (que lhe valeu o cognome de Kaiser, numa alusão à sua semelhança física com o grande Franz Beckenbauer) tinha outros talentos (jogar à bola é que não). Tinha uma “lata” incomum, o que o tornava uma criatura adorável. Apesar de não saber jogar à bola, a vida de futebolista (fora de campo, bem entendido) fascinava o Carlitos: as festas, as mulheres, o dinheiro. A personalidade cativante do Carlos conferia-lhe o dom de fazer amigos com facilidade, e uma noite conheceu (e ficou logo grande amigo) a grande estrela do Botafogo, Vinícius. Carlos convenceu-o a ajudá-lo a subir à primeira equipa do clube. Chegado à primeira equipa, Carlos impressionou todos nas provas físicas, o que fez com que assinasse um contrato profissional. O problema imediato de dinheiro e a fama de ser jogador de um grande clube (verdadeiramente, o que ambicionava) estavam resolvidos. A aflição é que teria de demonstrar que sabia jogar futebol (o que, de todo, não sabia nem gostava). Mas para o diligente Carlos, a angústia não perdurou muito tempo no seu espírito. No primeiro treino com bola, “lembrou-se de se lesionar” antes que tivesse de fazer um passe sequer. As técnicas de diagnóstico da época não permitiam ser concludentes em relação a certas lesões, sendo os esgares de dor do embusteiro, a prova “inequívoca” de que a coisa era séria. Este ardiloso plano viria a valer-lhe uma carreira de 26 anos como futebolista profissional, sem sequer fazer um jogo. Do seu portfólio de clubes onde (não) jogou constam Botafogo, Flamengo, Puebla do México, El Paso Sixshooters dos Estados Unidos, Bangu, Gazélec Ajaccio de França, Fluminense, Vasco da Gama, Louletano de Portugal e América do Rio de Janeiro. Numa altura em que ainda nem sequer se sonhava com a internet, era esta admirável “folha de serviços” que lhe ia abrindo, sucessivamente, as portas dos clubes.
Mas nada disto seria possível se Carlos não fosse um rapaz tão atraente e empático. O seu magnetismo também cativava os jornalistas, o que fazia com que muitas das suas façanhas inventadas fossem notícias destacadas nos jornais. As mil e uma histórias de Carlos fundem a realidade com a fantasia, sem nunca se perceber onde termina uma e começa a outra. Uma das mais deliciosas trata de como convenceu os jornalistas de que teria sido campeão do mundo de clubes pelos argentinos do Estudiantes de La Plata, aproveitando a sua semelhança física e de nome, com o futebolista argentino Carlos Enrique, esse sim campeão, engrossando assim, o seu “excepcional” currículo. Ou outra ainda, quando jogava no Bangu, em que na iminência de ter de jogar por pedido expresso do presidente do clube, após um curto período de aquecimento, resolveu saltar para a bancada para brigar com os adeptos adversários, alegando ter ouvido daí insultos dirigidos ao presidente do seu clube. Esta proeza fez com que fosse expulso mesmo antes de entrar em campo. Em vez de um valente “puxão-de-orelhas”, a peripécia ainda lhe valeu mais 6 meses de contrato, pelo desagravo ao atentado à honra do presidente.
Kaiser nunca se arrependeu do que fez. Disse, mais tarde, que os clubes passavam a vida a enganar os jogadores e que teria de haver alguém capaz de os vingar. Os antigos colegas de equipa nunca lhe guardaram rancor. Reconheciam-lhe o irresistível fascínio dos “bons malandros”. O mundo está repleto destas figuras encantadoras. Talvez não tão encantadoras como o Carlos, mas encantadoras. Tão encantadoras que passa despercebido que são, APENAS ISSO: ENCANTADORAS. A política talvez seja a actividade que tem demonstrado maior capacidade para gerar “Carlos Kaisers”. Carlos tentou (e conseguiu) fugir à escassez, e ser reconhecido e afamado por algo de que era incapaz. Outros, porém, mais motivados pela opulência e pelo poder do que pela fuga à desgraça, também desfilam o seu talento para a cantata, disfarçando com mestria, todo o resto que lhes falta. Tal como aos antigos colegas de equipa do Carlos, estes amorosos não me despertam qualquer tipo de aversão. Nalguns casos, até me incitam a condescendência e a zombaria bem-disposta. Mas contribuirão estes admiráveis, de alguma forma, para um mundo melhor? DE TODO! MAS TAMBÉM NÃO ESTÃO CÁ PARA ISSO.
* O autor deste artigo acha que foi o Carlos Kaiser que pensou o novo acordo ortográfico.
Aníbal Cardona
Consultor/Formador