Quantos de nós é que não colocámos já as nossas vidas em risco? Uns, os mais afoitos, apesar da consciência do perigo, resolvem correr riscos. Outros, os mais cobardolas (como eu), por simplesmente não os medirem convenientemente. Lembro-me de uma história passada já há alguns anos em que, de forma completamente inconsciente, me vi envolvido numa situação de extremo risco de vida. Não me lembro bem do ano. Terá sido em 2003 ou 2004, por alturas do Bodo. Estava a dar formação aqui em Pombal. A turma que tinha a meu cargo era constituída por cerca de 17 ou 18 pessoas, das quais apenas uma era do sexo masculino. Todas as outras eram senhoras. Ao que me lembro, o horário de cada sessão era das 19.00h às 22.30h. Uma bela noite, uma das formandas pediu-me, em nome das restantes, se poderíamos terminar a sessão do dia seguinte mais cedo. Ao porquê do pedido, respondeu-me que o Tony Carreira vinha dar um concerto no largo da biblioteca e muito prezavam estar presentes. Confesso que na altura, apesar de conseguir identificar a figura do Tony Carreira, não tinha qualquer noção da dimensão do fenómeno. Como gosto de ironizar, gracejei um pouco com o nome do artista e com a sua frondosa poupa (e pelo facto dela desafiar a Lei da Gravidade). Pela mudança repentina do semblante das formandas, percebi imediatamente que estaria a pisar “terreno minado”. A expressão daquele grupo de simpáticas senhoras tinha-se transformado num ápice. No momento seguinte pareciam um comando de mercenárias ávidas de sangue. Tentei “emendar a mão” o melhor que pude e, obviamente, acedi ao pedido. Não tanto por o considerar justo, mas pelo meu mais básico instinto de sobrevivência. Era óbvio que tinha cometido um sacrilégio e, como a História da Humanidade confirma, a blasfémia castiga-se com a morte. Mas lá escapei. UFFFF!!!!!
A Antropologia advoga que a cisão entre o sagrado e o profano é específica da cultura ocidental moderna. No entanto, também é comum observarmos no nosso contexto cultural, a atribuição de características veneráveis a pessoas, factos e objectos, mesmo que estes não correspondam exactamente ao que está instituído como sagrado. É comum, nos dias de hoje, observarmos movimentos de adoração, mais ou menos amalucados, a artistas e desportistas. Ao longo dos tempos, esta energia também foi aproveitada pelos líderes políticos (alguns de muito má memória), nomeadamente, com a conceptualização do “Culto da Personalidade”. Este conceito, mais comum em regimes totalitários, corporiza uma estratégia política que consiste na acerada exaltação dos líderes a um nível quase divino, lançando o equívoco de que a sociedade não se desenvolve a partir dela própria, mas sim através dos grandes líderes. Eles sim, capazes de antever a vontade geral. Apesar deste conceito ter sido pela primeira vez verbalizado por Nikita Khrushchov, nos anos 50, qualquer livro de História poderá atestar que, na prática, o conceito é muito mais antigo e amplamente utilizado.
A um nível mais micro, especificamente na política local, podemos observar diversos exemplos emblemáticos de atribuição de características bentas a movimentos políticos. Todos já ouvimos falar do mito que antediz que as eleições autárquicas não se ganham. Perdem-se. Este adágio alude ao facto de que, uma vez no poder, um partido só perde eleições se avacalhar mesmo muito. A forma de utilizar o instrumento do poder para que este se mantenha nas mesmas mãos, fez e continua a fazer “escola”. Especialmente em territórios de maior iliteracia política, como Pombal. O discurso maniqueísta dos detentores do poder, a exorbitação dos seus feitos e a manipulação pelos subsídios, vão consolidando nos eleitores uma percepção subjectiva de que só eles são capazes e que tudo está bem. Recordo-me de ter ouvido, certa vez, o actual candidato do PSD à Câmara Municipal de Pombal afirmar num discurso proferido em Carnide (na ocasião de uma das visitas de Pedro Passos Coelho ao concelho, nos seus idos tempos de popstar) que o PSD tem as melhores pessoas. Esta asserção sugere-nos que, para ele (presumo que pense aquilo que diz), são as opções políticas que determinam a qualidade humana e a capacidade de realização. CURIOSA MEDITAÇÃO.
A divulgação recente das estatísticas da demografia, poder de compra e desenvolvimento económico do nosso concelho, revelam um território moribundo. As suas conclusões são esmagadoras. Descolámos definitivamente dos padrões que caracterizam os concelhos do Litoral e aproximamo-nos perigosamente da realidade do Interior. São números irrefutáveis que nos deveriam fazer reflectir sobre se quem nos rege, merece, de facto, fazê-lo. A semana passada foi divulgada uma sondagem do Jornal de Leiria que projecta mais uma tranquila vitória do PSD nas autárquicas que se avizinham. Supostamente, a democracia confere-nos a possibilidade de mudarmos quando estamos mal. Olhando para os números irretorquíveis, contidos nestas estatísticas, pouco faltará para Pombal estar “ligado às máquinas”. Se, apesar de tudo, continuarmos a confiar nos mesmos (e tudo indica que sim), é porque, independentemente dos sucessivos falhanços (alguns irreversíveis) lhes atribuímos um estatuto sacro-santo (será a única explicação plausível). Como disse um dia o irónico escritor e poeta peruano, Luis Felipe Angell: “TER FÉ É MUITO SIMPLES. O DIFÍCIL É ACREDITAR NELA”. E, pelos vistos, é tudo uma questão de fé.
Aníbal Cardona
Consultor/Formador
*O autor deste artigo acha que o novo acordo ortográfico ficaria muito melhor composto se tivesse sido esgalhado pelo GRANDE TONY CARREIRA