Lost in translation é um filme americano com argumento e realização de Sophia Coppola. Venceu mesmo um Óscar para o melhor argumento original. Não me vou alongar em relação à trama, mas ao que o filme procura enfatizar: As palavras e as expressões de uma Língua encerram a cultura que lhe está subjacente e, quando traduzidas para outro idioma, perde-se parte do seu significado e emoção. Os portugueses acreditam que a melancolia misturada com solidão, a que chamamos saudade, não tem tradução possível.
É evidente que noutras Línguas também existem expressões difíceis de traduzir para português no seu sentimento e amplitude. Por exemplo, a expressão francesa Gilet Jeune. Gilet Jeune, em francês, significa um movimento de protesto não orgânico, com origem nas zonas mais rurais de França, mas que depressa se estendeu até à capital Paris. A sua motivação inicial foi a rejeição do aumento dos impostos sobre os produtos energéticos. O rol de reivindicações dos manifestantes depressa evoluiu para exigências de carácter social, fiscal e político: o aumento do poder de compra das classes média e baixa (especialmente das populações rurais e peri-urbanas), a manutenção dos serviços públicos, a melhoria da democracia representativa (através do referendo de iniciativa dos cidadãos), o fim das regalias dos políticos e a demissão do Presidente da República, Emmanuel Macron. Face à transversalidade, dimensão e violência dos protestos, o governo francês cedeu em quase tudo. Quase, porque Macron, ferido quase-de-morte na sua popularidade, prometeu “mundos e fundos” (que se lixe o défice).
Em Portugal, quando nos queremos referir a um movimento de protesto análogo, teremos, necessariamente, que utilizar o galicismo. A tradução “à letra” não corresponde a nada parecido. Coletes amarelos não quer dizer nada aparentado com Gilet Jeune. A única coisa que estes dois movimentos têm em comum é a roupita (coletes reflectores homologados pela norma europeia EN 471). De resto, mais nada. Ora vejamos: apesar de, em ambos os casos, terem sido as redes sociais a convocar as pessoas, ficámos a saber que cá em Portugal a virilidade que muitos manifestam à frente do teclado de um computador não é proporcional à que ostentam na perspectiva de levarem umas bastonadas da polícia; a escolha de um dia de trabalho para o protesto (o fim-de-semana é sagrado mesmo para os rebeldes) fez com que os mais vilipendiados pelos impostos e afins (leia-se, trabalhadores) não pudessem exteriorizar o seu dissabor; o nível de desorganização dos manifestantes fez lembrar os tempos do Sporting do Peseiro; a lista de reivindicações parecia ter sido cinzelada na véspera com um fino à frente; não se chegou a saber se haveria alguém mandatado para uma eventual negociação, etc.
Às tantas, estou a ser mauzinho com os organizadores do Movimento dos Coletes Amarelos. Talvez o insucesso do protesto esteja relacionado com o facto de não termos grandes motivos para recalcitrar: Pagamos alegremente com os nossos impostos as imparidades dos bancos arruinados pelo “descuido” de alguns ilustres; compreendemos que os nossos deputados, sem querer, registem presenças fraudulentas uns dos outros; perdoamos a um ex-Presidente da Republica (que nunca falava), por lapso, ter atestado a “saúde” do BES na véspera da sua hecatombe; aceitamos que os políticos (e até os aspirantes a sê-lo) mintam alegremente nos seus currículos; assentimos que um cartão partidário dê mais direito a um emprego digno do que um diploma universitário (daqueles a sério); concordamos que acabar com as reformas milionárias seria violação de expectativas, mas que congelar carreiras é um sinal dos tempos; aprovamos que o direito à segurança inscrito na constituição é desperdício de tinta; achamos que o facto de termos um ordenado mínimo ridículo é um teste à nossa imaginação; anuímos que ter os combustíveis mais caros da europa só nos dá importância; pensamos que a circunstância da política e os negócios andarem “enrolados” é fruto da nossa queda para o romantismo; aquiescemos que quase um quarto da população portuguesa se encontrar em risco de pobreza é resultado de sermos uns estroinas; acedemos que a saúde é um luxo; subscrevemos que o défice é um bem mais precioso do que a nossa dignidade.
Bem vistas as coisas, num país tão justo e com um povo tão feliz, seria difícil que um movimento de protesto como o dos Coletes Amarelos, mesmo que fosse bem organizado, pudesse alguma vez vingar. Ou isso, ou ainda falta a pequena gota de água, vinda não se sabe de onde, que faça transbordar o copo.
VIVE LA FRANCE!
Aníbal Cardona
*O autor deste artigo acha que o novo acordo ortográfico é dégueulasse.