O PERFUME DA SERPENTÁRIA | Mais uma Boda de Caná?!?!*

0
1524

Há mais ou menos 2.000 anos, em Caná na Galileia, realizou-se um casamento que viria a fazer “correr muita tinta”. Não por se tratar de um casamento de “famosos”, mas pelo feito excepcional de um dos presentes. A lista de convidados era extensa e dela constava um casal judeu que vivia na Nazaré (não a das ondas gigantes). Alegando um compromisso de última hora, o “cabeça de casal” não compareceu ao festejo, delegando no seu filho (que ainda vivia lá em casa apesar de já estar na casa dos 30) a companhia da mãe. O filho, Jesus de seu nome, com a irreverência algo provocatória própria da juventude, levou uma data de amigos. A festa estava tão animada que os convivas “enxugaram” o vinho todo (e era muito), ainda o folguedo ia a meio, provocando o embaraço dos nubentes e das suas famílias. Procurando evitar a desonra dos anfitriões e a zombaria dos comensais mais exigentes, a mãe de Jesus procurou interceder junto do seu filho para que arranjasse uma solução para o imbróglio. Jesus, apesar de já ser conhecido pelos seus dotes oratórios e ideais progressistas, parecia querer manter uma atitude discreta no evento. Face à insistência da mãe e apercebendo-se da enorme desolação daquelas famílias, acedeu ajudar (talvez um pouco a contragosto). E ZÁS!!! Num abrir e fechar de olhos, as ânforas que mandara encher com água ficaram cheias de vinho (e do bom). Os convidados, já um pouco emborrachados, dividiram-se entre o assombro e os aplausos. Assim a festa decorreu até às tantas sem grandes sobressaltos (apenas com uma rixazita ou outra, fruto da qualidade do néctar). Este terá sido o primeiro feito notável atribuído a Jesus, granjeando-lhe inúmeros admiradores (pelo menos um quarto da Humanidade).
O leitor poderá questionar-se por que razão estas linhas que vou escrevendo, e que dedico ao comentário político, começam com uma alusão ao Quarto Evangelho? Talvez por Jesus Cristo ter sido um homem de Esquerda? De todo. Recordo-me de ter lido um ensaio sobre o Concílio Vaticano II (o que me dá para ler…), que na sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes versava sobre a autonomia relativa entre o que apelidava de “realidades terrestres” e a missão religiosa da Igreja. A afirmação do Homem, da sociedade e da ciência pode ser autónoma sem comprometer uma íntima relação com o sagrado. Recentrando a discussão: a política como actividade humana é compaginável com a fé. Podemos até designar esta fé (algo abusivamente) de FÉ-POLÍTICA.
No entanto, é indiscutível que a política (em democracia) se reduz ao mais concreto dos concretos: OS VOTOS. Por mais fé (FÉ-POLÍTICA) que se possa ter no sucesso político, é a frieza da contagem dos votos que determina se esse êxito se materializa. Não será racional (e até pouco católico) esperar que o triunfo nos caia no colo sem trabalho (não confundir com esforço). A Física ensinou-nos que a aplicação de uma força só corresponde à realização de trabalho quando existe deslocamento do ponto onde essa força é aplicada. Como tal, é fundamental identificar muito bem o ponto onde fazer incidir essa força. Politicamente falando, aferir com rigor onde é possível ir buscar os votos que são necessários para um bom resultado eleitoral. Esta deverá ser a preocupação central de quem se mete nestes sarilhos.
Se observarmos o comportamento do eleitorado em Portugal, constatamos que há uma larga fatia de eleitores (moderados) que desloca o seu sentido de voto entre o PSD e o PS consoante os contextos, permitindo a alternância do poder. Em Pombal não se verifica esse deslocamento. Todos os actos eleitorais deste século, tanto legislativos como autárquicos, redundaram em vitórias do PSD e por margens apreciáveis. No caso das autárquicas, a diferença de votação entre estes dois partidos desde 2001 nunca foi inferior a 6.900 votos, chegando a superar os 10.000 nas eleições de 2005 e 2009. Parece óbvio que o eleitorado (os que na realidade votam) de Pombal é fortemente conservador e vota docilmente nas setas, independentemente das circunstâncias.
Por esta ordem de razões, parece pouco plausível esperar que um discurso direcionado para enternecer o eleitorado do PSD possa surtir o efeito desejado, apesar da sublimação evidente que o partido patenteia neste momento. Das variáveis em confronto nesta equação e com potencial de exploração, a abstenção, pela sua enorme dimensão (desde 2009 nunca foi inferior a 25.000), parece ser a que deva merecer uma maior atenção. É certo que existe uma tendência global de crescimento da abstenção e cuja inversão de trajectória é difícil. No entanto, uma análise mais profunda da multiplicidade de motivações subjacentes à tomada de decisão de simplesmente não ir votar poderá ajudar a identificar linhas de intervenção producentes. Razões como o alheamento do processo político, falta de identificação com os actores políticos e com as propostas políticas, repugnância, preguiça, casmurrice, etc., concorrem para o robustecimento do abstencionismo. Esta diversidade é desafiante e a sua caracterização, apesar de exigente (extrapola largamente os “muros” do Facebook) é fundamental para que se definam os elementos mobilizadores adequados a cada universo a explorar. O estabelecimento de linhas programáticas, factores de novidade/ diferenciação, estratégias de pré-campanha e de campanha e, por fim, os perfis dos candidatos, deverão estar alinhados com rigor nos alvos a atingir. Qualquer inversão destes momentos não será lógica. Será como preparar a resposta a uma questão ainda não formulada.
A gestão de qualquer processo, além do mais um processo tão complexo e com tantas inter-acções como um processo eleitoral, não se compadece com tomadas de decisão baseadas em percepções subjectivas. São conhecidas as limitações de meios, de tempo e de recursos disponíveis para os que (generosamente) se embrenham nestas empreitadas. No entanto, será exigível um mínimo de sistemática e sofisticação na prossecução destes adimplementos. Se assim não for, o exercício não passará de uma estridente profissão de FÉ (POLÍTICA). Mas não me parece que o convidado especial da Boda de Caná apareça por cá para operar mais um MILAGRE (desta feita, o milagre da transformação dos votos). Se aparecer, como o nosso munda anda, terá mais do que fazer do que vir dar uma mãozinha nas autárquicas.

Aníbal Cardona
Consultor/Formador

*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico parece ter bebido uma ânfora de “água” nas Bodas de Caná.

 

 

Partilhar
Artigo anteriorCARTAS POMBALINAS | Contra a corrupção, firmeza e determinação!
Próximo artigoDA ILUSTRE TERRA DO MARQUÊS | Um dia memoravelmente histórico
Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.