O PERFUME DA SERPENTÁRIA | Marés mortas*

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Em Novembro de 2016 travei conhecimento com a família de um empresário pombalense há muitos anos radicado nos Estados Unidos da América. Dos poucos contactos que mantive com esta família, afigurou-se-me claro que se tratava de gente simples mas capaz e excepcionalmente bem formada, e cujo trabalho já teria sido reconhecido, em tempos, pela própria administração de Barak Obama. Tinham passado poucos dias da eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América e, claro está, este tema teria de vir à liça. Calhou que acabasse por aflorar este assunto com uma das filhas do empresário, que também era administradora da empresa do pai. Atendendo ao seu perfil, surpreendeu-me um pouco quando me confidenciou que teria votado em Donald Trump. Apercebendo-se talvez da minha expressão de pasmo, apressou-se a justificar sua opção. Disse-me que a política americana se tinha transformado numa corporação e que Hillary Clinton simbolizava o rosto dessa mesma promiscuidade. Admitiu não ser uma entusiasta de Donald Trump, cuja personalidade seria pouco confiável mas que, para ela, o mais importante era dar um sinal claro de que a população já estava cansada de um sistema político pútrido. Disse também que se fosse Bernie Sanders o candidato democrata, pela mesma ordem de razões, provavelmente votaria nele. Mais do que tentar compreender os argumentos, procurei apenas assimilá-los.
Em Setembro de 2018 participei numas jornadas técnicas nas quais reencontrei alguns colegas e amigos brasileiros. Gente boa. Faltava sensivelmente um mês para as eleições presidenciais brasileiras e, obviamente, o tópico teve que se contender. Talvez por já os conhecer e respeitar, tanto pessoal como profissionalmente, fiquei algo mais espantado (talvez até consternado) quando me afirmaram que iriam votar em Jair Bolsonaro. Neste caso foram até bastante exaustivos a enumerar os atributos tenebrosos de Bolsonaro mas concordavam que era imprescindível expurgar o PT do poder e eleger alguém (fosse quem fosse) fora do sistema político tradicional brasileiro, completamente deteriorado pela corrupção. Mais uma vez, limitei-me a escutar a argumentaria sem, no entanto, disfarçar um esbugalhar de olhos próprio de quem escuta o inaudito.
Face a estas duas “experiências” não pude deixar de reflectir no seguinte: por que razão gente aparentemente estruturada e resolvida, por força da náusea que o sistema político vigente lhe causa, foi capaz de votar em perfeitos energúmenos, apesar de lhe reconhecer a desmedida panóplia de defeitos e inconsistências? A realidade política, económica e social dos Estados Unidos e do Brasil não é comparável entre si e, muito menos, com a nossa. Os nossos problemas são substancialmente diferentes dos dos Estados Unidos e do Brasil, pelo menos em dimensão. Mas parece evidente que cada vez mais se vai instalando um ascozito em relação ao nosso sistema político. Além disso, nós também temos o nosso energumenosinho capaz de capitalizar o voto de protesto: o Ventura. Esta criatura, através da sua homilia populista, para além do seu eleitorado natural (os Neandertal) vai demostrando alguma capacidade para conglutinar o eleitorado anti-sistema. Para além de desagradados pelo embrulho da política, estes que se deixam inebriar pelo canto do André são também pouco sensíveis aos absurdos marialvistas e racistas que profere e muito desatentos às patranhas que apregoa: muito prolixo na denúncia da corrupção mas tolerante com as moscambilhas dos seus amigos (Benfica e Steve Bannon); perentório em defender em campanha a exclusividade dos deputados mas pouco célere em desfazer-se dos seus empreguinhos na CMTV e na consultora Finpartner (função muito pouco compatível com o cargo que ocupa na Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças na qual tem acesso a informação privilegiada sobre questões fiscais, de vital interesse para os clientes do seu patrão).
Com pouca noção de que a política e os políticos caminham por ruas pouco iluminadas (a abstenção inusitada assim o assevera) e de que os partidos tradicionais são a última reserva da democracia, alguns actores principais parecem não perceber que certos desvarios pouco consentâneos com a sua condição podem, aos poucos, fazer pender os pratos da balança para o lado do discurso fácil do populismo. Mesmo os políticos mais hábeis são capazes de, desnecessariamente, contribuir para o descrédito da sua classe. Como exemplo, vejamos o triste episódio do apoio do Primeiro-ministro António Costa à candidatura de Luís Filipe Vieira à presidência do Benfica, que para além de ser arguido na “Operação Lex”, algumas das suas empresas são responsáveis por gigantescas “crateras” na banca (as que andamos todos a pagar). NOTA: Mas faça-se justiça, tal como Joe Berardo, o Luís não deve nada a ninguém. As suas empresas é que “ferraram o cão” aos bancos.
Por cá, o ambiente político também parece comungar desta condição de desconceito. Para além da pasmaceira resultante de um poder cristalizado, as sucessivas disceptações de “faca e alguidar” e as suspeitas de trapaça, parecem agudizar uma atmosfera já por si propícia à desmobilização. A avaliar pelo que tem vindo a público, o próximo acto eleitoral autárquico parece indiciar que será mais um imenso bocejo com o resultado de sempre. O leve odor de acrimónia que se pressente em relação ao status quo político, sugere que o aparecimento de uma candidatura independente poderia dissipar o oscito que se perspectiva. Sabemos que apesar da lei eleitoral autárquica permitir candidaturas independentes, esta possibilidade é uma falácia. Os requisitos logísticos e financeiros necessários a uma candidatura potencialmente bem-sucedida são tais que dissipam qualquer atrevimento (a não ser se a candidatura emergir de organizações partidárias em desavença). Mas vamos imaginar uma candidatura independente, protagonizada por alguém que surja da sociedade civil, com provas dadas e forte afinidade com a nossa região, que congregue transversalmente o apoio de várias forças políticas. RESULTARIA? Não me parece que as estruturas partidárias locais fossem capazes de tamanha audácia. Tal como nas marés mortas, em Pombal a diferença entre a maré alta e maré baixa mal é percebida.

Aníbal Cardona

Aníbal Cardona
Consultor/Formador

*O autor deste artigo acha que o novo acordo ortográfico é um imenso mar flat.

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.