Há uns meses, um colega da escola primária publicou no facebook uma foto da nossa turma desses tempos. Foi giro reavivar as lembranças dessa época tão distante, mas também tão marcante. Reconheci-os a todos. Mais do que isso, lembrei-me dos seus nomes e temperamentos. Eram uns putos fixes. Todos amigos. A verdade é que já naquela altura era possível observar o estabelecimento de algumas hierarquias. Nas aulas havia uns que eram melhores alunos que outros. Apesar disso, não me recordo da nossa professora usar com frequência o auxiliar pedagógico mais precioso da altura (régua, leia-se) para punir um erro ou uma conta mal feita. Esse poderoso assistente trabalhava mais sob o pretexto da travessura.
Mas a nós, a pseudo-hierarquia vigente na sala de aula, pouco contava. O que interessava era a forma como a ordem se configurava no recreio. Aí, misturavam-se as turmas todas. E o que é que se fazia? Jogava-se à bola! O toque para o intervalo representava o apito inicial do árbitro e o toque de entrada, o apito final (não poucas vezes desprezado). Como o campo era pequeno não podiam jogar todos. Então, quem é que escolhia os que jogavam? Neste contexto emergiam sempre duas personalidades: o dono da bola (ter uma bola de couro conferia um estatuto e poder inquestionáveis; a riqueza absoluta) e o “fortalhaço” (aquele que, pelo seu tamanho, nem precisava de dar uns tabefes a alguém para ser reconhecido como tal). O “fortalhaço” dava cobertura ao dono da bola e, como recompensa, jogava sempre. Como eu era um minorca e não tinha bola nem jeito para jogar, ficava quase sempre de fora. Divertia-me a ver os outros divertirem-se. Mesmo assim, ficava satisfeito. Havia alguns que nunca eram escolhidos. Apesar dos evidentes atributos do “fortalhaço”, o dono da bola exercia uma incontroversa supremacia sobre ele. Se não houvesse bola não havia diversão.
Relembrei-me desta relembrança há uns dias, a propósito de uma notícia que li no Público. Aludia à publicação do relatório Public Good or Private Wealth da OXFAM, que marcou o arranque do Fórum Económico Mundial de Davos. Esse documento refere que em 2018 os 26 mais ricos do mundo detinham tantos recursos como os 3,8 mil milhões de pessoas que fazem parte da metade mais pobre da população mundial. Além desta referência verdadeiramente chocante, anunciava o crescente fosso entre ricos e pobres. Um dos factos mencionados na notícia foi o de 1% da fortuna de 112 mil milhões de dólares do homem mais rico do mundo (Jeff Bezos, o dono da Amazon) ser equivalente ao total do orçamento para a Saúde da Etiópia (uma população de 105 milhões de pessoas). Se ainda subsistissem dúvidas em relação à falência do capitalismo, este relatório desnudaria completamente todo e qualquer argumento. É por demais evidente que a forma como as nossas economias estão organizadas catalisa a concentração da riqueza nas mãos de alguns (poucos) privilegiados, enquanto vários milhões de pessoas mal conseguem sobreviver. É a exorbitação da INJUSTIÇA e da DESUMANIZAÇÃO da sociedade.
Esta tendente desumanização da ordem mundial poderá assumir contornos ainda mais catastróficos na próxima década. A galopante evolução tecnológica, consubstanciada nos avanços ao nível da inteligência artificial, ameaça lançar milhões para o desemprego. Configura-se, pois, um cenário de um novo absolutismo, baseado no poder do capital e da inteligência da lógica dos zeros e dos uns, evoluindo no sentido da dispensabilidade do ser humano. Talvez tenha chegado o momento de novas revoluções liberais. Estas um pouco diferentes. Centradas na colocação do capital e da inteligência ao serviço do Homem e do seu direito a viver com qualidade e dignidade.
Quando assistimos ao presidente francês a implorar a 150 milionários para que invistam no seu país, ficamos com a ideia de que o mundo está ao contrário. Urge que os estados se unjam de coragem e definam políticas de investimento verticais em serviços públicos de qualidade. Que sejam inflexíveis com a corrupção e com a especulação. Que a sua acção se enfoque na distributividade justa, mitigando assim as desigualdades. Que saibam que a inevitabilidade do avanço tecnológico não pode significar uma disrupção na evolução da Humanidade. Pelo contrário: é uma oportunidade de repensar o papel do Homem na Sociedade e no Trabalho.
Recentemente, o governo anunciou a sua intenção de abolir as propinas no ensino superior. Choveram críticas. Essencialmente daqueles que vêem pouco mais além do que o seu próprio umbigo. É óbvio que esta medida “per se” não resolve a equidade no acesso à educação (fica por resolver o estado das escolas, as creches, a especulação no arrendamento do alojamento, etc.). Mas é um sinal positivo aplicado a um sector ESSENCIAL.
O dono da bola e o “fortalhaço”, nos tempos em que andava na primária, queriam jogar à bola com os outros. Estes novos “donos da bola” e os “fortalhaços” que lhes dão cobertura são uns tolos. Querem ficar a jogar à bola, sozinhos.
Para a Professora Emília Carecho, esteja onde estiver.
Aníbal Cardona
*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico devia ter-se metido com o “fortalhaço” na escola primária. Logo via…