Cresci num prédio mesmo defronte ao Jardim das Laranjeiras. Exactamente no mesmo prédio da Papelaria Académica. Era lá que comprava o material escolar, as BD´s e os brinquedos. Lembro-me de, ao longo dos anos, terem passado por lá várias gerências, mas sempre simpáticas e deferentes para com os vizinhos. Vendiam também guloseimas: as saudosas pastilhas Pirata e uns rebuçados que no meio do embrulho tinham um cromo de um jogador de futebol. Muitas vezes, o rebuçado estava um bocado derretido e o cromo ficava todo pegajoso. Mas não interessava. Dava-se-lhe uma lambidela e ficava “impecável”. Quando tinha de optar entre os doces, apesar de ser muito mais adepto das Pirata, escolhia os rebuçados por causa do cromo. Mais tarde surgiram as colecções de cromos em que não se tinha de comprar o rebuçado. Eram de outro nível. Para além da muito melhor qualidade, não ficavam todos amarrotados e peganhentos. Tanto requinte cativou-me e passei a ser, como tantos outros putos daquela época, um entusiasmado colecionador de cromos. Esta excitação teve muitas intermitências até que se dissipou. Para isso contribuiu o facto de, por este ou por aquele motivo, apenas ter concluído uma das muitas colecções que iniciei. Mas lembro-me da emoção, como se fosse hoje. A colecção que concluí (como todas as outras que iniciei) era de jogadores da bola. Como na altura não passavam muitos jogos na televisão, ficava a imaginar, apenas pelo seu aspecto, se seriam bons jogadores ou não. Nos anos 70, a grande maioria dos jogadores exibia um frondoso bigode e era com base neste apêndice capilar que imaginava a qualidade do desportista. Quanto mais farfalhuda e estilosa fosse a bigodaça, mais talento lhe atribuía. Então se o bigode fosse acompanhado por uma farta trunfa, não restavam dúvidas de que se tratava de um craque.
Actualmente, a realidade dos cromos é muito diferente da do tempo dos jogadores que embrulhavam rebuçados. A Panini, uma empresa italiana que lidera este mercado, transportou-o para outro patamar. Para além da excelência gráfica das figurinhas e de já nem sequer ser necessário passar cola no cromo para o colocar na caderneta, encetou diversas estratégias de marketing que possibilitam a qualquer um, por um preço justo, completar a sua colecção. Apesar da evolução, a elucubração não se alterou: se não virmos os jogadores em acção, será apenas a inspiração despertada pelas suas carantonhas que nos poderá fazer imaginar as façanhas futebolísticas de que serão capazes.
O frenesim de cartazes e de folhetos das campanhas eleitorais traz-me sempre à memória os meus tempos de colecionador. A explosão de caritas lavadinhas e lépidas dos candidatos que decoram as nossas cidades, bem que podem ser comparadas à imagem da abertura efusiva de uma carteira de cromos, só que muito maior. Tal como nos cromos, é o semblante dos postulantes que nos cria um primeiro, e tantas vezes definitivo, impacto. Daí a grande importância do atavio. Uma camisita mal passada, uma gravata mal escolhida ou uma madeixa mais rebelde, pode deitar tudo a perder. E o sorriso?!? Ah, o sorriso. O sorriso tem de ser tão genuíno e cativante quanto possível. A partir deste ponto começam a acentuar-se as diferenças entre o cromo-candidato e o cromo-cromo. Ao contrário do cromo-cromo, o cromo candidato tem mais uma dimensão (é em 3D), possui o dom da prosápia e, lá no fundo, é provido de alma. Se a sua condição tridimensional lhes confere a capacidade de serem beliscáveis, a dádiva da oratória pode outorgar-lhe mais ou menos carisma. Quanto à alma, deverá andar sempre um pouco recôndita, dependendo do grau do seu talento para o melodrama. E o programa eleitoral? Se nas eleições para a Assembleia da República, pela sua carga ideológica, se conseguem escrutinar diferenças entre os litigantes, nas autárquicas nem por isso. Lembro-me de uma conversa que tive ao balcão da Cervejália com um amigo, que à data era membro da Comissão Política de um dos principais partidos locais e que tinha tido responsabilidades autárquicas, que me disse: “O programa eleitoral é um detalhe sem importância. Faz-se numa noite. O importante é interagir com os eleitores.” Vindo de quem veio, nem me atrevi a esboçar qualquer tipo de objecção. Mas não pude deixar de relectir sobre estas palavras, sempre no sentido de as valorizar como autênticas. Na realidade, se pegarmos nos programas eleitorais autárquicos dos diferentes partidos nos últimos anos e os sobrepusermos, constatamos que não divergem substancialmente: ATRACÇÃO DE INVESTIMENTO; MAIS EMPREGO; FIXAÇÃO DA POPULAÇÃO; MAIS E MELHOR CULTURA; MELHOR AMBIENTE; MELHORES ACESSIBILIDADES.
Parece óbvio que todos os candidatos que se perfilaram ao longo dos anos, identificaram correctamente as nossas mínguas e plasmaram nos seus programas a predisposição para o seu combate. No entanto, em nenhum desses programas aparece a mais ténue pista de como alcançar o desiderato. Olhando para a realidade da nossa Cidade e Concelho, salta à vista dos menos atentos que a peleja tem sistematicamente redundado em derrota. O indicador mais evidente deste malogro é a continuada perda de população. O argumento de que este facto resulta da situação conjuntural do país é válido, sem dúvida. Mas também será uma evidência que a capacidade para contrariar as circunstâncias adversas é o que distingue os excepcionais.
Será que neste processo eleitoral autárquico que se avizinha seremos brindados com programas eleitorais com objectivos bem definidos e com referência às estratégias para os alcançar? Dirigir-nos-ão projectos focalizados no estrutural e não apenas no circunstancial? Ou então, como é prática, preferirão reservar-nos um elencar de meros anseios, lugares-comuns e simpáticas frivolidades? Se em relação aos cromos-cromos será legítimo fundamentar a nossa preferência na sofisticação do seu grafismo, aos cromos-candidatos será, com certeza, lícito e lógico exigir-lhes algo mais. SE NÃO LHES CAUSAR UMA MUITA MAÇADA, EVIDENTEMENTE.
Aníbal Cardona
Consultor/Formador
*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico é um cromo daqueles que embrulhavam rebuçados.
*Artigo de opinião publicado na edição impressa de 25 de Março