O PERFUME DA SERPENTÁRIA | Perdoa-me!

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Em 1994 estreava na SIC o primeiro reality show da televisão portuguesa: o “Perdoa-me”. Tratava-se de um formato da holandesa Endemol que procurava criar um envolvimento que permitisse a pessoas desavindas fazerem as pazes. Casais de namorados, pais e filhos, irmãos e irmãs, amigos, primos, etc. O enredo era simples: a parte que se sentia culpada contactava a SIC e dizia de quem queria o perdão. A partir daí, a apresentadora ia a casa do despeitado com um ramo de flores e convencia-o a ir ao programa para escutar as súplicas de indulgência do penitente. Na maior parte dos casos, o programa acabava com reconciliação, abraços, beijos, baba e ranho. Para além de lançar as carreiras das suas apresentadoras (Alexandra Lencastre, primeiro e Fátima Lopes, depois), o “Perdoa-me” abriu a “Caixa de Pandora” da exploração nauseosa da vida privada e da lágrima fácil.
Desgraçadamente (ou não), o “Perdoa-me” foi descontinuado em 1995 depois de duas temporadas. Talvez se ainda persistisse, o mapa eleitoral autárquico de Portugal fosse diferente. Vejamos: últimas eleições autárquicas, no cômputo dos 308 concelhos de Portugal, foram a sufrágio mais de 150 candidaturas independentes. Só aqui em Pombal tivemos duas (NMPH e Independentes por Pombal). Se no caso do meu amigo Amílcar Malho, o que o impeliu a candidatar-se foi uma mistura de determinação, atrevimento e um pouco de loucura, no caso de Narciso Mota não foi mais do que uma birra. Acho até que a contenda se resolveria com uma luta de almofadas, tal o clima de dilecção que reina actualmente entre os outrora zangados. Mas a acrimónia terá sido o principal motivo de nas últimas autárquicas terem aparecido tantas e tantas candidaturas independentes. Basta centrarmo-nos nas que saíram vitoriosas. Das 17 candidaturas independentes vencedoras, ao que julgo saber, apenas uma diz respeito a alguém que nunca teve um cartão partidário: Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto. A esmagadora maioria dos autarcas eleitos por movimentos independentes já militaram em partidos políticos e, muitos deles, já contavam com relevantes percursos autárquicos. A razão pela qual estes se apresentaram a sufrágio foi, sem qualquer dúvida, a caturrice. Nalguns casos, estes caprichos esvaziaram eleitoralmente os seus ex-partidos, provocando um grande exacerbação nestes.
Neste último verão, a cobro do “barulho das luzes” da pandemia, o PS e o PSD (os mais castigados pelo aparecimento das candidaturas independentes), com a abstenção (leia-se conivência) da CDU, fizeram aprovar na Assembleia da República mais uma alteração à Lei Orgânica 1/2001 que estatui a eleição dos órgãos autárquicos. Esta alteração visou sobretudo colocar mais umas pedras na engrenagem do processo de constituição de candidaturas independentes. Para além de todos os obstáculos já existentes (milhares de assinaturas necessárias, dificuldades de financiamento e logística, regime de IVA diferente dos partidos, indiferença da comunicação social, etc.), acrescentou-se a impossibilidade do mesmo grupo de cidadãos se candidatar a mais que um órgão autárquico. Assim, um grupo de cidadãos apenas pode concorrer a um dos órgãos autárquicos (câmara ou assembleia municipal). Também passará a ser impossível que esse grupo se candidate a mais do que uma junta de freguesia. À primeira vista (não sendo eu versado em leis), esta alteração não parece reforçar o direito dos cidadãos de participação na vida pública (artigo n.º 48 da Constituição da República Portuguesa), nem tampouco a igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas (artigo n.º 113 da Constituição da República Portuguesa). Semanas mais tarde, Marcelo Rebelo de Sousa (tão “zeloso” da Constituição, mas sempre fiel aos seus amigalhaços), entre dois mergulhos na Baía de Cascais, promulgou alegremente o diploma.
Parece-me óbvio que a lei eleitoral autárquica, mais do que alterações, necessita urgentemente de uma revisão. Não faz qualquer sentido haver vereadores da oposição no executivo camarário (não servem para nada). Também não me parece razoável que os presidentes de junta de freguesia tenham assento na assembleia municipal com direito a voto (no limite podem subverter o sentido da votação de um órgão para o qual não foram eleitos). Estas alterações aprovadas parecem cirurgicamente produzidas para ajudar os partidos políticos a dissuadirem os seus “enfants terrible” de se porem com ideias. Na falta da Alexandra Lencastre ou da Fátima Lopes a entregarem ramos de flores apelando à concórdia, mais vale impor a paz (podre), reduzindo-a à letra da lei.
Numa realidade política marcada por uma trajectória crescente da abstenção, a abertura da possibilidade de candidaturas independentes aos órgãos locais parecia ter como objectivo incitar a participação dos cidadãos no processo político, reforçando a vitalidade do sistema democrático. Lapso: O “vírus da partidarite” é tão inexorável que é capaz de inquinar o próprio substrato de que se alimenta. Se algum dos meus ilustres concidadãos estiver a pensar em aventurar-se (já ouvi uns zum-zuns nesse sentido), é melhor vestir o fato de chumbo. O terreno está tão minado como o Paralelo 38.

Aníbal Cardona
Consultor/Formador


*O autor deste artigo acha que o novo acordo ortográfico não tem perdão possível.

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.