Sou um admirador incondicional de Woody Allen. Além dos seus filmes, também gosto dos livros, de o ouvir tocar clarinete e até compro aquelas colectâneas de músicas dos seus filmes, ou simplesmente escolhidas por ele. De entre os seus filmes, não consigo dizer qual deles prefiro. O seu gosto pelo burlesco, a sofisticação dos diálogos, a desconstrução dos mitos de uma sociedade obcecada pelos temas sexuais, a obsessão / compulsão / insegurança / hipocondria das personagens encantam-me deveras.
O “ABC do amor”, de 1972 (Everything You Always Wanted to Know About Sex. But Were Afraid to Ask) é um filme composto por sete histórias curtas, nas quais o tema do amor é abordado por diferentes, pouco convencionais e deliciosamente perturbadoras, perspectivas. Uma dessas histórias (“O que são perversões sexuais” – What are sex perverts?) parodia um antigo concurso de televisão americano chamado What´s my line? que aqui é chamado de What’s my perversion? (Qual é a minha perversão?). As imagens são apresentadas a preto e branco e simulam a qualidade televisível da época. Neste concurso fantasiado por Allen, os concorrentes tentam adivinhar as perversões sexuais de diversos convidados e no final é dada a oportunidade a um deles para, perante a plateia, concretizar a sua perversão sexual. A perversão encenada é a de um rabino judeu, que é amarrado a uma cadeira e chicoteado por uma mulher sado dressed, que lhe vai chamando aturadamente “seu maroto”. Isto, enquanto observa a sua mulher a comer costeletas de porco. O sorriso 3 por 8 do rabino durante o desvario masoquista é hilariante e exorbita a capacidade de Allen de se rir de si próprio e da sua condição (é um judeu convicto).
Recordei esta história a propósito da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) aos créditos incobráveis da Caixa Geral de Depósitos (CGD), nomeadamente a que envolveu a audição de Joe Berardo. À primeira vista, podemos pensar que o comportamento cavernícola e desafiador do Comendador se justifica apenas por ser uma personagem arrogante e mal-educada (isto já se sabia). Mas poderá também ser legítimo pensar que esta atitude seja o reflexo de algum desvalor que se abateu sobre as CPI. Sempre que se configura um novo escândalo, o ritual repete-se: constitui-se uma CPI e dá-se início a uma deprimente sucessão de teatralidades cujo elemento comum é a inocuidade das conclusões (quando as há). Mais do que apurar responsabilidades, as CPI têm exposto as singulares “perversões” dos inquiridos. Já assistimos a tudo: os olvidos ridículos de Zeinal Bava, o trocismo de Belmiro de Azevedo, o deslumbre de Maria Fernanda Barbosa, etc. A postura grosseira e afrontadora de Berardo, não pode ser desconectada da aparente abnóxia que tem caracterizado a acção das CPI.
No entanto, a maior das perversões não será o curioso trejeito comunicacional do gótico Joe. Ao que me recordo, Berardo não terá entrado de pistola em punho pela sede da CGD a exigir os quase mil milhões em apreço. Com certeza que lhos foram dados e, pelos vistos, apenas com a garantia de que, se “desse para o torto”, os papalvos dos cidadãos comuns cobririam o desatino com o dinheiro dos seus impostos. Isto para continuar a garantir a “sagrada” estabilidade do sistema financeiro. Aqui, também me parece que o espertalhão Berardo, quiçá a contar com a indestreza (ou outra coisa) dos “senhores” da CGD, premeditou tudo. Afirmo isto, porque me parece a razão mais plausível para explicar o facto de, ao longo dos últimos anos, se ter desfeito de todos os seus bens. TODOS, NÃO! Ficou com uma garagem.
Para completar este panorama de completa sul-americanização do regime (LEIA-SE, DECADÊNCIA), não é possível excluir da equação o papel do Banco de Portugal (BdP). Para cumprir o seu importante papel de regulador / supervisor do sistema bancário, o BdP custa por ano aos contribuintes, apenas em custos com pessoal, 120 milhões de euros (in relatório e contas do BdP de 2015). Contudo, parece evidente que não cumpre de forma “imaculada” essa sua função. Para o cidadão comum, ao qual, qualquer incumprimento com o Estado ou com a banca é exemplarmente reprimido, não se afigura inteligível a obstinação em manter Carlos Costa como governador do BdP. Ou então, face à sucessão de “incidentes” que têm envolvido os bancos: MUITO, MESMO MUITO COMPREENSÍVEL.
Para terminar, e face à proximidade das eleições europeias, não resisto em registar o aprazimento com que as forças políticas em cotejo acolheram o tema “Show Berardo”. Assim tiveram mais alguma coisa para juntar aos assuntos que, com tímidas excepções (falou-se um pouco de fundos comunitários), têm escolhido para debate: fogos, professores, helicópteros, filhos, primos, amigos e SÓCRATES, SÓCRATES, SÓCRATES. Sobre os grandes e mais clivosos desafios que a Europa enfrenta, talvez os mais importantes dos últimos 70 anos: NADA!. AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS, A CRISE DOS REFUGIADOS, A ESTRATÉGIA DE DEFESA, O PÓS BREXIT, A POLÍTICA EXTERNA DA UNIÃO, A NOVA DIALÉTICA TRABALHO / INTELIGÊNCIA ARTIFICAL, O COMBATE À POBREZA, O RECRUDESCIMENTO DO NACIONALISMO / EUROCEPTICISMO ficaram (esmagadoramente) fora de celeuma. Por que razão? Talvez porque os nossos partidos políticos pensem, genuinamente, que o simplório eleitorado português não tem aptidão para entender temas tão requintados. Ou isso, ou porque não tenham uma teoria minimamente consolidada sobre a Europa. Seja por uma razão ou por outra (ou pelas duas, concomitantemente), É PERVERSO.
Aníbal Cardona
Consultor/Formador
*O autor deste artigo acha que o novo acordo ortográfico é um pouco perverso.