A partir do século XIII, Amesterdão afirmou-se como uma importante cidade portuária. Os marinheiros que aí aportavam, não procuravam propriamente teatros e bibliotecas. Deixavam-se mais encantar pelo “Belo Sexo”. Naquela altura, mesmo que as mulheres ostentassem um farfalhudo buço e uns quilitos a mais, não perdiam o epíteto de “Belo Sexo” (tudo era preferível às brincadeiras de algum Imediato mais atrevido). Face à procura, Amesterdão constituiu-se como um importante território de meretrício, nomeadamente, no bairro de De Wallen. Nos séculos subsequentes, esta actividade foi combatida pelas autoridades. No entanto, o empreendedorismo das profissionais nunca esmoreceu, até que, no século XVII, o ofício foi definitivamente legalizado. Apesar da legitimação desta tão antiga ocupação, a sua regulação só teve lugar no século XX (já que existe e cumpre uma função social, deve pagar impostos – pensaram as “retrógradas” autoridades holandesas). Progressivamente, o bairro escuro e perigoso de De Wallen transformou-se numa atracção turística. Se é aceitável ir a Roma e não ver o Papa, já não se pode consentir ir a Amesterdão e não ir a Red Light District (cognome entretanto assumido pelo bairro de De Wallen por causa da cor das luzes das montras que estadeiam as meninas).
Uma coisa parece evidente para quem visita De Wallen: em De Wallen não há virgens! Tal como no parlamento (segundo afirmou a deputada do PSD Emília Cerqueira para justificar a batota dos colegas no registo das presenças). Não é a primeira vez que alguém se refere aos políticos e ao facto de serem pouco pudibundos nas relações. O recentemente falecido “camarada” Arnaldo Matos (a quem presto a minha homenagem) celebrizou a frase: “Isto é tudo um pute**!” Estas referências parecem descabidas, mas convido-vos a um exercício para indagar a canonicidade dos desabafos da parlamentar Emília e do “ardente” Marxista-Maoista Arnaldo. Para simplificar, vamos reduzir o universo de análise e centrar-nos apenas nas moçoilas da Red Light e nos deputados da Nação. Constatamos que, para além de ambos já terem perdido a pudicícia, existem mais analogias. Por exemplo, as pequenas de De Wallen não regateiam ir hoje com um e amanhã com outro. O mesmo é permitido aos deputados: hoje estão a trabalhar para o bem da Pátria (?!?) e amanhã engalfinham-se nos braços de um qualquer escritório de advogados (alguns deles com negócios com o Estado). 2018 parecia ser o ano em que o estatuto do deputado iria ser definitivamente clarificado e tendente à exclusividade das funções, admitindo excepções em relação às actividades de docência, de investigação e de criação artística e literária. NADA DISSO! FICOU TUDO NA MESMA! Talvez assim se cativem os melhores para a política (objectivo que tem sido “amplamente alcançado”). Que se lixe a separação de poderes entre o público e o privado.
Outra semelhança que podemos encontrar entre as cachopas da Red Light e os deputados é o facto de ambos gostarem de se mostrar. As petizas exibem toda a sua sensualidade nas montras. Por seu turno, os deputados alardeiam toda a sua eloquência nas comissões de inquérito parlamentar, que apesar de estéreis, já arremessaram alguns deles para a ribalta. Todos gostam de uma boa comissãozinha apesar de nunca se ter concluído nada. BES, Tancos, Estaleiros de Viana, parcerias público-privadas, BPN, etc… , serviram para dar o tão almejado palco a quem o deseja com afã. No entanto, há limites. Nem tudo justifica um inquérito parlamentar. Por exemplo, o caso dos acessos indevidos à plataforma CITIUS do Ministério da Justiça. Apesar de ter representado um rombo no tiritante pilar do Estado de Direito, nem uma palavra. Não vão os adeptos do Benfica ficar amuados (e são muitos) e punirem nas urnas os autores de ideia tão peregrina.
Podemos encontrar uma nova analogia entre as Red Light girls e os deputados. Refiro-me ao regime de honorários. Apesar de não ter explorado suficientemente a situação em relação às moças de Amesterdão, ao que me apercebi, a mecânica é a seguinte: bate-se ao vidro e, de porta entreaberta, o cliente cochicha o serviço (ou conjunto de serviços) que deseja. A profissional faz rapidamente as contas de cabeça e solicita a retribuição pretendida. Isto tudo sem alarido. Da mesma forma, a remuneração dos deputados também não é de todo cristalina (julgo que até para os próprios gera alguma confusão). Além do vencimento (50% do ordenado de Presidente da República), têm direito a um rol de miminhos sob a forma de mordomias e, sobretudo, de abonos: representação, deslocações, deslocações especiais, até mesmo a simples presença no parlamento. Os mais dados à moscambilha, apesar de terem casa e fazerem a sua vida em Lisboa, dão a morada da santa terrinha para receberem mais uns cobres. MIL PERDÕES!!! ISTO NÃO É TRAPAÇA NENHUMA!!! Há um parecer do auditor jurídico da Assembleia da República que refere que, para efeitos de pagamento do subsídio de deslocação, não é relevante um deputado ter casa própria em Lisboa. O que conta é o local onde o parlamentar tem a sua existência organizada. Perante tão sábio veredicto até pagamos o dispêndio com mais contentamento.
Mesmo num âmbito meramente académico, comparar as messalinas de Amesterdão com os nossos deputados, além de despropositado, é um vil exercício de puritanismo bacoco e de populismo. Longe de mim tal atrevimento: elas vestem-se melhor e (pelo menos) sabemos ao que vêm.
Até sempre “camarada” Arnaldo Matos.
Aníbal Cardona
*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico devia ter ido a Amesterdão ver as montras. Talvez se apaixonasse e ficasse por lá. Ou isso, ou apanhasse gonorreia.
Artigo publicado na edição impressa de 28 de Fevereiro