Os meus pais tinham uma loja de roupa e desde cedo, eu e a minha irmã, éramos “convidados” a ir ajudar para a loja nas férias escolares. Apesar de, na altura, não achar o “convite” muito apetecível (o chamamento da brincadeira era muito forte), olhando para trás, reconheço que foi uma fase importante. Para além de me ajudar a compreender e a valorizar o trabalho, fortaleceu a minha capacidade de escutar, comunicar e aprender. Lembro-me de tantas e tantas histórias (algumas absolutamente deliciosas) que só um contacto próximo e continuado com o público me poderia oferecer. Lembro-me de expressões utilizadas por alguns clientes às quais não estava habituado. Por exemplo: roupa para semanar e roupa para domingar. Estas expressões eram utilizadas pelas pessoas das aldeias quando queriam roupa para utilizar no trabalho (semanar) ou para usar no lazer (domingar). A primeira era uma roupa mais resistente, mais escura e, necessariamente, mais barata. A segunda seria uma roupa mais delicada, garrida e pelas quais os clientes não se importavam de “abrir os cordões à bolsa”, desde que ficassem bonitos. A roupa para domingar deveria ser capaz de transformar o mais rústico camafeu num Rodolfo Valentino ou numa Agnes Ayres. Mas, muitas vezes, um inusitado pendant, uma peúguinha branca ou uma camisa demasiado afraldada, denunciavam que o conteúdo não combinava com o “embrulho”.
A roupita domingueira que esta extrema-direita que temos, tão prolixa na defesa da decência e do justicialismo, por desmazelo no atavio, tem deixado perceber ao que vem e por quem vem. Recordo-me de um artigo que li no Público, há um par de anos, baseado num inquérito feito porta-a-porta na Alemanha e em França, acerca das motivações das suas populações para votarem em partidos de extrema-direita. A esmagadora maioria dos inquiridos não manifestava inclinações xenófobas, racistas ou discriminatórias contra refugiados, imigrantes ou minorias étnicas, mas sim preocupações com as suas condições de vida, justificando esse voto como um protesto em relação ao sistema político vigente que consideravam incapaz de dar uma resposta cabal a essas inquietações. A insatisfação e a revolta, pelo seu carácter emotivo, são facilmente passíveis de manipulação, especialmente em contextos culturais menos robustos. O populismo é capaz de cavalgar estas emoções. A sua deriva Excepcionalista procura nos “diferentes” e nos vulneráveis, a culpa de todos os males, instigando a divisão e o ódio. Serão os pouco mais de 1% da despesa que a Segurança Social dedica ao Rendimento Social de Inserção (PORDATA 2017) que promove a ruína do país e a injustiça? Será este um custo demasiado elevado para a preservação da dignidade das pessoas e da paz social?
A corrupção é reconhecidamente um flagelo que a todos atormenta. Como tal, o seu combate teria de figurar no discurso fácil do comentador Ventura. A colocação em causa do funcionamento do sistema judicial é o caminho mais curto para o estabelecimento de um Estado autoritário. Por outras palavras, a propalada “ditadura das pessoas de bem”. Só por vício de perspectiva é que se poderá afirmar que a corrupção chegou a Portugal com a democracia. Durante a ditadura, tanto o poder político como económico e social, concentrava-se e perenizava-se em muito poucos, e o elevador social estava, para quase todos, encravado entre a cave e o rés-do-chão. Haverá maior indício de corrupção? O que mudou foi a percepção da corrupção por parte dos cidadãos. Antes, o poder dominante obstaculizava a informação através do instrumento da censura, tornando a corrupção ignota. Em liberdade, a tabloidização da informação olha para o escândalo e a corrupção como uma apetecível oportunidade de vender uma boa história.
Para além dos delírios Absolutistas e Napoleónicos, o pensamento político do comentador de bola tem a estrutura de um saco de vento. Às segundas, quartas e sextas propõe a privatização de tudo. Às terças, quintas e sábados, parece que não (ao domingo vai à missa pedir desculpa). Propõe uma taxa única para o IRS mas não a consegue explicar. Talvez por ser um plágio atabalhoado do programa da IL (Revelou-se muito melhor a copiar o imaginário nacionalista do Estado Novo e a “gesticulária” do Trump. DEPRIMENTE!
A legitimação da mutilação e a auto-consagração divina do comentador escancaram por completo a tampa do baú sem fundo do abjecto e da demência. Interessará a alguém esta anacrónica “4.ª República” que o comentador clama (para além dos seus “donos” e dos “portugueses de bem”)? Verão os cidadãos comuns (mesmo os que agitam alienadamente estas bandeiras) algum dos seus reais problemas resolvidos? O argumento que oiço com frequência na rua é o de que “isto precisa de um abanão”. Não posso deixar de lhes dar alguma razão. Mas valerá a pena incendiar a casa para acabar com as térmitas? Como se demonstrou no dia 6 de Janeiro em Washington, A DEMOCRACIA É FRÁGIL. A sua conquista foi dura e morosa. A sua perda pode ser num estalar de dedos.
A democracia, no seu regular funcionamento, terá lugar para uma direita patriótica (não nacionalista), tradicionalista, clerical e legitimista. Não, com certeza, para este lamentável folclore malcriado, perigosamente mentiroso, divisionista, xenófobo, pseudo-justicialista e incongruente. Uma sociedade que se alicerce no ódio será, por definição, uma sociedade falhada. Meio milhão de portugueses são de outra opinião. É o apelo da berrante roupita “contrafeita”.
Aníbal Cardona
Consultor/Formador
*O autor deste artigo acha que o novo acordo ortográfico está muito mal vestido.