Mesmos os menos conhecedores da lenda que deu origem às festas do Bodo (como eu), sabem que na sua origem está uma procissão de preces aflitas do nosso povo, para que uma incomum praga de gafanhotos que se abateu por cá desse tréguas. O fito destas rogativas foi Nossa Senhora de Jerusalém. Saciada pela devoção que lhe dedicaram, de um dia para o outro, a Senhora de Jerusalém resolveu a contenda. A gratidão das nossas gentes revelou-se infinita, ao ponto de pronunciar o comprometimento em repetir o préstito todos os anos. Logo no primeiro ano da repetição, D. Maria Fogaça, senhora abastada e muito devota, chamou a si a programação e dispêndio das celebrações. Apesar de muito monja, revelou-se visionária e patrocinou também, para deleite do povo, actividades que extrapolavam o pendor exclusivamente religioso: danças, fogos e escaramuças. Ao longo dos anos seguintes, as festas foram-se tornando cada vez mais ricas e mais sedutoras.
Por estes dias (os dias das festas), e apesar da Sra. D. Maria Fogaça já não deambular no mundo dos vivos há largas décadas, não pude deixar de a recordar. Já naquela altura, Fogaça percebeu que deveria diferenciar as festas como forma de encantar e incluir as gentes. Foi a sua criatividade e arrojo que ajudaram a densificar e opulentar a tradição. Passados tantos anos, e apesar de não terem faltado evocações da ilustre senhora, a essência do seu pensamento foi-se deslembrando. Ao longo dos últimos anos, a realização das festas do Bodo foi-se despindo de criatividade. Parece-me que, para quem tem a responsabilidade de as pensar e realizar, se tornaram um “fardo”. Descoberta (ou copiada) uma formulação do agrado das pessoas, e pronto! É só ir repetindo: Um cartaz musical, deejays e cerveja em barda (no Arnado); carrosséis (no largo da biblioteca); Bodo antigo, farturas e produtos regionais (no Cardal); mostra das associações, actividades económicas e tendas (na zona desportiva) e pelo meio o desfile da Confraria do Bodo (posso estar a ser injusto, mas ainda não percebi para que serve). Há uns anos, alguém teve um assombro de “criatividade” e tentou plagiar a EXPOFACIC. Alguns lembrar-se-ão do resultado: Cataclismo! Falhado o experimento, “ad cautelam” voltou-se à mesma enunciação de sempre.
Tornando à evocação das origens das festas do Bodo, e reflectindo sobre o seu significado literal, bodo quer dizer: distribuição solene de alimentos. No seu sentido lato: distribuição de bens. Reabrindo esse espírito, parece-me pouco razoável organizar um evento que atrai milhares de pessoas e não prever uma estratégia concertada para a dinamização do comércio local. Pelo contrário, o comércio deslocado dos locais de celebração, ficou mais “às moscas” do que habitualmente (à excepção dos restaurantes, talvez).
Como referi, a confinação das festas aos locais de sempre, desvia-as do carácter tentacular com que deveriam trespassar a cidade. Temos lugares e recantos na nossa cidade que não deveriam ser esquecidos: A Praça Marquês de Pombal, o Castelo, o Jardim da Várzea, a Praça Manuel Henriques Júnior.
Neste Bodo, voltámo-nos a esquecer de que cá em Pombal temos gente “Ousada”, talentosa e empenhada, que flana entre as mais diversas linguagens artísticas: Da música ao canto, às artes performativas, à fotografia, ao cinema. No entanto, insistimos em tatuá-la com um apostólico rótulo de subversão e de menoridade. Sem querer reconhecer que também representa o Pombal contemporâneo. Um Pombal que se atreve.
Não me agrada desconsiderar o trabalho dos outros, mas gostaria de sentir que o Bodo merece alguma disponibilidade e destreza intelectual por parte de quem tem a obrigação de o ponderar. Em vez disso, assistimos à penosa repetição de uma fórmula pouco criativa e provinciana. Maria Fogaça, há muitas calendas, conseguiu demonstrar que se pode ser beato sem deixar de ser imaginativo, audacioso e inclusivo.
*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico passou a véspera (até às tantas) na barraca da Super Bock.
Aníbal Cardona