O PERFUME DA SERPENTÁRIA | Vive la Résistance*

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Os relatos de guerra são quase sempre tristes. Mas também têm o seu lado romântico. Encantam-me as histórias de resistência. A Resistência Francesa, na 2.ª Grande Guerra, congrega um dos movimentos de insurreição mais retratados pelos historiadores, documentaristas, escritores e cineastas. Apesar de existirem algumas narrativas dissonantes da interpretação consensual (como é o caso da contida no livro de Robert Gildea, “Fighters in the Shadows: a New History of the French Resistance”, que trata a Resistência Francesa quase como se de um movimento de mercenários se tratasse). O entendimento geral do papel dos Partizans na libertação de França do domínio nazi, é enaltecido na maior parte dos escritos, louvando a coragem e a audácia que emprestavam às suas acções. O filme Casablanca de Michael Curtiz, lançado em 1942 (em plena guerra), dramatiza um delicioso momento de exaltação da resistência dos franceses à ocupação alemã. A trama desenrola-se em Marrocos, na cidade de Casablanca. Nessa época, os nazis ocupavam o Norte e a costa atlântica de França. O Sul, apesar de não ocupado pelos alemães, obedecia ao governo colaboracionista de Vichy. Marrocos, que na altura era uma colónia francesa, também aquiescia a Vichy. A descontinuidade territorial entre França e Marrocos fazia com que em Casablanca se respirassem ainda algumas brisas (poucas) de liberdade, o que na metrópole já não era de todo possível. Isto, apesar da cada vez maior presença de tropas alemãs na cidade. O momento ao qual me refiro, e que se transformou num dos mais icónicos da história do cinema, teve lugar no bar Rick’s Café Américain. Um grupo de soldados alemães, um bocado tocados, toma conta do piano e começam a cantar estridentemente Die Wacht am Rhein, um hino patriótico do século XIX, provocatório e contrário à pretensão dos franceses em fixar o Reno como a sua fronteira natural a leste. Não suportando a humilhação, Victor Laszlo, um foragido líder da Resistência Francesa, aproxima-se da orquestra do bar e ordena-lhe que toque A Marselhesa. Hesitante, o chefe da orquestra olha timidamente para o dono do bar, Rick Blaine, como que a pedir autorização para obedecer a Laszlo. Rick dá o seu consentimento com um breve, mas firme, aceno de cabeça. Aos primeiros acordes do hino de França todos se levantam e o entoam fervorosamente. Os soldados alemães ainda se debatem para que a sua marcha prevaleça, mas é rápida e esmagadoramente abafada pela paixão e exaltação com que os franceses cantam A Marselhesa. O seu final é celebrado com aplausos e gritos de VIVE LA FRANCE. Esta cena é recriada com pompa e preceito na casa de família do meu amigo (DO PEITO) Adelino Araújo, em dias de aniversário. SUPERBE! Mas foi demais para os nazis que estavam no bar. A vingança não se fez esperar e, nessa mesma noite, o Rick’s Café Américain é entaipado. Rick pagou pelo atrevimento de afrontar os dominantes e poderosos.
A belíssima cena de A Marselhesa exubera o sentimento de raiva incontida dos franceses perante a humilhação infligida pelos ocupantes, mas simultaneamente retrata a França colaboracionista de Pétain, tão bem personificada pelo Capitão Renault. Renault era o comandante da polícia de Casablanca, cuja subserviência aos nazis lhe proporcionava a amplificação do seu poder e a tolerância em lucrativas tramóias. Uma guerra é uma guerra. Não permite gradações. A acção do filme passa-se em 1941. Nessa altura a operação Barbarossa, no leste da Europa, corria de “vento em popa” para os nazis e a neutralidade americana ainda era um facto (pelo menos aparente). Para qualquer observador minimamente atento, era fácil vaticinar o triunfo esmagador da Wehrmacht. Este prognóstico (felizmente errado) despertou (não só em França, mas em muitos outros países ocupados pelos nazis) movimentos colaboracionistas espontâneos, movidos, tanto por comungarem do ódio pelos Judeus, como por procurarem posicionar-se numa nova organização social que brotaria do pós-guerra
Hoje vivemos outros tempos. Irrepetíveis. Hoje vivemos em democracia. Não em guerra. Nem sequer em ditadura. Heráclito, o mais radical dos pensadores Dialéticos (para muitos, o “Pai da Dialética”) celebrizou esta frase: “um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio, porque nem o homem nem o rio serão os mesmos”. Mas será que o homem não é, de facto, o mesmo? Não será, para alguns, maquinal procurarem associar-se ao poder vigorante? Será esse impulso uma manifestação do mais básico instinto de sobrevivência (conforto)? Será a adoração dos poderosos uma eloquente exteriorização de cobardia? Representará essa pulsão uma síncrise da característica mais diferenciadora do Ser Humano, que é o PENSAMENTO? Ou será apenas ESPERTEZA SALOIA? E OS OUTROS? NÃO SERÃO TAMBÉM OS MESMOS? Os que, com desapego, se atrevem a PENSAR e RESISTIR? No dia em que estou a escrever este artigo, foi decidido conceder honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes. Dedico estas linhas à sua memória e ao seu excepcional exemplo. VIVE LA RÉSISTENCE!

Aníbal Cardona
Consultor/Formador

*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico só pode ter amigos poderosos. SENÃO….

 

 

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.