Ler Franz Kafka é um permanente desafio. Tem que se ser tenazmente paciente e atento. Não é por acaso que o termo “kafkiano” invadiu o nosso léxico para definir algo confuso, ilógico ou absurdo. “O Castelo” é talvez o seu romance mais desafiante. Depois de uma estopada de quase 400 páginas, ficamos sem saber como catalogar a sua construção. Grosso modo, a história versa sobre um (talvez) agrimensor, de nome K, que é chamado pelo Conde Westwest, Senhor de um castelo nas proximidades de um vilarejo remoto. Ao longo da trama, K depara-se com múltiplos constrangimentos (nunca claramente explicados) para chegar ao castelo. A sucessão de circunstâncias absurdas, preceitos burocráticos inusitados e inopinados mal-entendidos, fazem com que não consiga concretizar os seus intentos. A partir de certa altura, K, mais do que o desejo de fazer o trabalho para o qual foi mandatado, passa a ser movido por uma obsessão. Não só para entrar no castelo, mas também para o compreender. Compreender sobretudo o poder que o castelo exercia sobre o vilarejo. O Castelo foi talvez o livro que mais pó acumulou na minha estante até ter coragem (e é preciso ter coragem!) para o ler. Mesmo sabendo que, lá pelo meio, haveria, com certeza, apontamentos de chavascal, inevitáveis em Kafka, e tão do meu agrado. A fabulação que vos proponho pretende evidenciar as similaridades e as dissemelhanças da experiência do cavalheiro K, se em vez de ter sido chamado pelo Conde Westwest, tivesse sido pelo mandador de Pombal para fazer por cá esses trabalhos.
A primeira semelhança que encontrou prendeu-se com o facto das povoações que circundam os castelos, em ambas situações, serem vilas. Segundo o multisciente programa televisivo “Domingão”, Pombal também é uma vila, caso não o tenham ainda percebido. Ciente que o magistrado de Pombal se encontraria no castelo, K decidiu deslocar-se até lá. Assim poderia saber de viva voz, quais os lavores a realizar. Para saber que caminhos teria de trilhar, procurou um posto de informação turística. Procurou, procurou, mas não encontrou. “Que terra estranha, esta!” – murmurou com os seus botões. Lembrou-se do vilarejo de Kafka que também não suportava forasteiros. Mas K estava determinado em chegar ao castelo. Como não era embaraçado, abordou o primeiro transeunte que encontrou e perguntou-lhe qual o caminho a seguir para chegar ao castelo. Este, solícito, indicou-lhe pronta e simpaticamente o caminho que teria de percorrer. Agradeceu e registou a diferença de tratamento em relação à história que no passado vivenciou. Ao contrário dos habitantes do vilarejo de Kafka, que eram rudes e macambúzios, os vilões (no seu sentido gentílico) de Pombal eram gentis. Recordou-se então de, nas suas mil viagens, ter ouvido histórias em surdina sobre Pombal, em conversas de alguns anciãos longínquos. Ouvira que o togado de Pombal era famoso pela sua afabilidade. Era tão afável que tinha transformado a sua, não menos afamada, homilia da felicidade em decreto. Escutara também que um antigo reinante de Pombal teria gasto fortunas em adornos para o castelo. E ouvido ainda que um outro soberano quisera instalar um teleférico para transportar os visitantes até lá. Se na narrativa de Kafka, K ficou insano de curiosidade para entrar no castelo, ainda mais arrebitado ficou para conhecer o Castelo de Pombal.
Mas como ainda era cedo, K resolveu aproveitar para conhecer melhor as gentes de Pombal e testemunhar a sua felicidade decretada. Desiludiu-se um pouco. Os pombalenses, apesar de não serem propriamente carrancudos como os da trama original, não irradiavam a felicidade com que contava. Para além disso, eram mais entradotes. Tal como na história anteriormente vivida, também um pequeno grupo tinha mais privilégios do que os restantes. No relato de Kafka, eram os funcionários do Conde. Aqui em Pombal eram os “aparentados” do poderoso. Depois da breve “mengladela” com os nativos, e seguindo escrupulosamente as indicações que lhe tinham fornecido, em menos de nada, K estava na base da íngreme encosta do castelo. Mas nem sinal de teleférico. BOLAS!!! Mas não seriam estas circunstâncias a desencorajar o obstinado K. Já tinha vencido obstáculos maiores. A certo ponto da subida, deparou-se com uma imensa escadaria de betão em plena mata. Apesar de achar que betão no meio do matagal combina tanto como acompanhar “jaquinzinhos” com Don Pérignon, K convenceu-se que aquela aberração despesista seria um sinal inequívoco da opulência que encontraria no castelo. Prosseguiu o seu caminho cada vez mais consumido pela curiosidade. Quando lá chegou a cima, deixou-se maravilhar pela altaneira e arranjadinha alcáçova templária. Nada de semelhante com o que se deparou na aventura vivida na diegese do literato Franz. Nesta última, K tinha-se encarado com um amontoado de casebres de aparência miserável. Aqui não! Era uma fortaleza a sério. K perguntou-se: “que mil experiências maravilhosas esta garbosa cidadela me reservará?”. Na prosa de Kafka, K nunca chegou a conseguir a entrar no castelo. Aqui, apesar de um pouco empedernido pela exigência da subida, entraria com facilidade. E entrou.
Nem vivalma. Nem sequer o mandante de quem esperava ordens. A expectativa que criou de que o Castelo de Pombal lhe proporcionasse experiências reserváveis (tão em voga nos locais históricos) ficou gorada e enterrada. Nem lhe foi possível visitar as muralhas onde os Templários andavam à bulha com os invasores! De repente, sente o olhar de través de uma solitária senhora que se assomando da porta de uma construção inspirada na arquitetura do Antigo Egipto o convidou para assistir a um pequeno filme sobre a lenda de Al Pal Omare e da Reconquista. Subiu à torre de menagem e saiu apressadamente. Desencantado, perguntou-se: “As mil riquezas que se gastaram a aformosar o castelo, não lhe poderiam ter outorgado experimentos capazes de assaltar as memórias?”. “Que pretextos terão os multívagos, além do engano, para um dia se sujeitarem a tão tortuosa subida que os leve a visitarem o Castelo de Pombal?”. Uma coisa é certa: a aventura de K em Pombal seria, com toda a certeza, capaz de agitar o génio de Franz Kafka. Talvez até se pudesse constituir como uma obra-prima do antilogismo.
Aníbal Cardona
Consultor/Formador
* O autor deste artigo acha que o novo acordo ortográfico, mesmo que tivesse sido congeminado por Kafka, seria menos ilógico.