“Mãe, podes comprar-me outro lego?”. É uma boa obsessão. Um vício construtivo. Um passatempo desafiante para a mente. Um regalo para os dedinhos que vão encaixando as peças de várias cores e formando construções cada vez mais detalhadas: quartéis de bombeiros equipados e prontos para apagar qualquer incêndio e acudir a qualquer acidente, esquadras de polícia, aviões, barcos, bichos de todos os tamanhos e feitios. O mundo real, em miniatura, que nasce de um amontoado de peças e desenha sorrisos de vitória no rosto dos construtores quando, finalmente, foi possível encaixar tudo e tirar dali um sentido.
Nunca fui muito boa a “fazer legos”, mas aprecio o princípio, pois é exatamente o mesmo que orienta a construção de um texto e isso, sim, é a “minha praia”. É algo que me dá gozo fazer. Tal como as peças de lego, as palavras também estão à espera de serem encaixadas, de forma coerente e harmoniosa, de modo a transmitirem uma mensagem. Os poetas, de forma particular, estão sempre com este processo em mãos, às vezes até escrevem poemas sobre isso mesmo, como é o caso de Nuno Júdice no poema intitulado “Para escrever o poema”: “O poeta quer escrever sobre um pássaro:/e o pássaro foge-lhe do verso./O poeta quer escrever sobre a maçã:/e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou./O poeta quer escrever sobre uma flor:/e a flor murcha no jarro da estrofe./Então, o poeta faz uma gaiola de palavras/para o pássaro não fugir./(…) Então, o poeta põe água na estrofe/para que a flor não murche./Mas um pássaro não canta/quando o fecham na gaiola./E a água que devia manter viva a flor escorre por entre os versos./E quando o poeta pousou a caneta,/o pássaro começou a voar, (…)/O poeta voltou a pegar na caneta,/escreveu o que tinha visto,/e o poema ficou feito.”
A experiência do poeta, à semelhança da criança que brinca com os legos, é fantástica, pois o mundo circundante deixa-se representar, generosamente, através da arte. O pássaro, a maçã e a flor eternizam-se na palavra escrita, embora, inicialmente, pareçam querer resistir a isso. O poeta vence essa resistência ao pegar na caneta e ao registar a sua existência na folha de papel. A criança ganha a batalha quando todas as peças deixam de ter uma existência individual e desprovida de sentido, para formarem uma figura que ela pode nomear e, com a qual, pode fantasiar múltiplas aventuras em espaços onde nunca esteve. Para o leitor curioso, que vai em busca do sentido do texto, o poeta reserva também esse privilégio: viajar/fantasiar sem sair do mesmo lugar.