Dava prazer ver a alegria da netinha de 5 anos, rapando os rebuçados do centro da mesa, juntando-os ao seu monte e olhando divertida para o do avô, cujo monte já tinha muito poucos rebuçados. O certo é que já não era a primeira vez que jogavam mas, naquele jogo de sorte, esta estava sempre do lado da pequenita, para grande satisfação e diversão, quer da neta, quer do avô.
O jogo é, como sabemos, bastante simples. Basta ter um pião de quatro faces que tem, em cada uma, inscrita uma letra: R (rapa), T (tira), P (põe) e D (deixa). Trata-se de um jogo tradicional português, que se crê ter origem judaica. Pode-se jogar a feijões, moedas, rebuçados, etc.
Põe-se o pião a rodar e depois é uma questão de sorte. Neste caso, esta estava sempre do lado da netinha, a quem saía, demasiadas vezes, a letra R. Rapava tudo, exibindo um sorriso bonito e feliz. Quando já não havia mais rebuçados na mesa e o avô já não tinha nenhum, o jogo acabava e a neta era a vencedora natural e habitual.
O avô ficava naturalmente satisfeito, embora sem perceber a razão de ser do facto de a netita lhe ganhar sempre. Mas, também não se preocupava muito com isso, antes pelo contrário.
Sem querer nem fazer grande esforço, o pensamento do avô aproveitou este jogo para conjugar a realidade atual. Deste exercício mental, resultaram algumas reflexões que talvez valha a pena partilhar com os prezados leitores.
A ordem não é necessariamente a mesma. Aliás, tratando-se de um pião, é aleatório, quer o início, quer o fim, porque rodando, nunca se sabe quantas voltas dá e onde pára.
Nessa ordem de ideias, procurando compreender a nossa situação atual, podemos começar pelo P (põe). O Governo pôs ou seja deu regalias, vantagens, direitos, facilidades… Deu a ideia que éramos ricos: saúde, educação, sem pagar ou pagando pouco, autoestradas sem pagar, subsídios de desemprego e outros sem grande controlo dos beneficiários, reformas da função pública, muitas vezes antecipadas e com valores superiores aos que se recebiam quando trabalhavam, gente a mais no Estado e nas autarquias, emprego para clientelas partidárias e para familiares, independentemente da competência e sem controlo da produtividade, etc. Muitas regalias, mordomias e outras vantagens, sem se ter capacidade para sustentar estes luxos, recorrendo ao endividamento, pedindo dinheiro emprestado para continuar a pôr neste monte de ilusões políticas em que temos vivido…
É sabido que depois da tempestade vem a bonança e depois da fartura vem a realidade. Vivemos em clima de abundância durante largos anos e quando alguns responsáveis políticos, com mais bom senso ou obrigados pela realidade ou pelos credores, viram que, assim, isto iria acabar mal, o P foi substituído pelo T e começaram a tirar alguns direitos sociais, regalias e outras vantagens que antes tinham dado.
Primeiro lentamente, a pouco e pouco, mas como os efeitos não eram muito relevantes porque não conseguiam controlar e cortar na despesa pública e o aumento da receita era insuficiente, tiveram que deitar mão ao R ou seja começaram a rapar, agravando o corte nos direitos e nas regalias e aumentando os impostos sobre os contribuintes, ao ponto de ser opinião generalizada que é impossível aumentar mais a carga fiscal que os portugueses atualmente já suportam.
Chegámos assim a uma situação curiosa: a receita pública não pode aumentar porque atingimos o máximo de tributação possível, mas a despesa não diminui apesar dos cortes, talvez por que estes são feitos onde é mais fácil (rendimentos do trabalho e das pensões, direitos sociais) quando deveriam ser nas rendas pagas pelo Estado (parcerias público-privadas, energias, subsídios do setor público, etc.), pois o efeito seria muito maior e não afetaria o nível de vida dos portugueses. Fatalmente, parece podermos concluir que este país não é viável, porque não é auto sustentável e só consegue viver à custa de empréstimos.
E chegámos a esta situação porque, o pião da nossa sorte ou melhor do nosso azar, parou demasiadas vezes no D ou seja, deixámos andar.
Ganharam-se fortunas à custa da especulação imobiliária e que favoreceu os Bancos, deu dinheiro às Câmaras, aos clubes de futebol, aos partidos políticos e aos políticos, mas empobreceu o País. Engordaram-se empresas construtoras de obras públicas à custa das derrapagens orçamentais, aprovadas pela irresponsabilidade de quem decidia em nome de todos e geria o dinheiro público despreocupadamente.
Construíram-se infraestruturas tantas vezes desnecessárias, tais como auto-estradas paralelas, estádios de futebol, etc. à custa de empréstimos, hipotecando o futuro. Era fácil concluir que a situação era insustentável, mas deixámos andar…
Agora indignamo-nos quando nos tiram direitos, nos Rapam grande parte do que ganhamos, quando devíamos ter visto que nos estavam a Pôr o que não tinham. Os políticos sabiam isto, mas queriam continuar a ganhar eleições para garantir mordomias e empregos, talvez pensando que a União Europeia não nos deixaria falir e suportaria os desvarios resultantes da inconsciência dos nossos governantes.
Temos o direito à indignação. Mas, olhando para trás, não nos sentiremos também culpados porque quisemos que o pião da sorte tivesse parado demasiadas vezes no D, para nosso azar?…
manuel.duarte.domingues@gmail.com