Aula de Português. Campainha estridente, correria para a aula, casacos ensopados de chuva e de uma incontrolável vontade de brincar mais. Portas que se fecham e que se abrem. Cadeiras vazias, expectantes. Mesas anseiam pelos cadernos e pelas mãos que fazem deslizar o lápis sobre o papel, enchendo-o de letras e números. Entram em tropel, parecem potros aos saltos, resistentes ao trabalho, sempre a inventarem estratégias para boicotar obrigações. Bola estacionada em cima do caixote do lixo. Pés debaixo das mesas, a tentarem, involuntariamente, comunicar com a bola. Sumário. Quadro branco com palavras pretas e vermelhas. “Os Lusíadas”, episódio do Gigante Adamastor. Camões fala sobre conceitos intemporais, mas muitos alunos olham-me com aquela cara de quem acha que estamos a falar de algo incompreensível. Gasto-me a explicar a atualidade do texto. As palavras saem da minha boca e batem nas grossas muralhas da falta de atenção deles. Procuro brechas nessas muralhas, incessantemente. Escrevo no quadro. Dito. Emendo. Explico novamente. Comparo com situações da atualidade. Aplico ao dia a dia deles.
Círculo lentamente pela sala enquanto fazem um exercício. De repente, apreendo uma pequena folha: duas quadras, um rap, rabiscado ali mesmo, improvisado na aula de português. Criatividade também rima com hormonas “aos pulos”.
Lembro-me do romance ”As aventuras de João sem medo”, de José Gomes Ferreira, história fantástica que recorre ao imaginário mágico, por vezes de inspiração surrealista, sendo um prodígio da efabulação e do engenho narrativo.
Trata-se de uma crítica ao fascismo através da ironia associada a João sem Medo, o protagonista. Vive em “Chora-que-logo-bebes” – “exígua aldeia aninhada perto do Muro construído em redor da Floresta Branca onde os homens, perdidos dos enigmas da infância, haviam instalado uma espécie de Parque de Reserva de Entes Fantásticos”. Aí, os choraquelogobebenses passam os dias a choramingar. Porém, um habitante, João sem Medo, é um resistente à choraminguice e um dia decide saltar o Muro. A partir daí, as suas aventuras fazem com que tudo seja possível no mundo imaginário.
Um livro, simultaneamente, divertido e sério, com uma história segmentada em capítulos curtos que apresentam as situações mais estranhas com as quais João sem Medo se depara depois de saltar o Muro, como um encontro com um gramofone com asas, a existência de uma cidade da confusão ou uma conversa com uma menina, cujos pés são ocos. Pequenos episódios que proporcionam um escape à realidade e que, ao mesmo tempo, escondem valiosas mensagens. Por exemplo, quando João sem Medo se depara com dois caminhos: o da felicidade e o da infelicidade, e deve escolher um deles, sabendo que terá que aceitar que lhe cortem a cabeça para seguir o caminho da felicidade. José Gomes Ferreira parte, assim, de uma situação conhecida de outras histórias fantasiosas, na qual uma personagem tem de preferir um caminho a outro, sendo o mais difícil o que revela ser a escolha acertada, para criticar o regime fascista da altura, que pressupunha a ausência de espírito crítico, ou seja a aceitação de que fosse “cortada” a cabeça, para se poder ser feliz. A ler, sem qualquer dúvida, a partir do início da adolescência.
Aula, novamente. Declamação do poema ”O Mostrengo” de Fernando Pessoa depois de ouvirmos (e até cantarmos) “O homem do Leme” dos Xutos e Pontapés. Só uma aluna se voluntariou. Fez bem a tarefa, esforçou-se. Outros alunos quiseram, logo, declamar. Afinal, há mesmo brechas nas muralhas da desatenção deles, neste momento estão despertos e curiosos para aprender. “Agora é a stora, vá lá!”. Dramatizo o poema porque amo fazer isso. Engano-me a meio, mas isso de nada importa. Simulo o medo do homem do leme, a zanga do mostrengo e aquele final magistral em que o homem do leme dá voz exemplar à plena ousadia. Palmas. Não vamos esquecer aquele momento, contá-lo-emos, um dia, aos netos, à lareira ou numa tarde de verão. Eles contarão, também, quase de certeza, que a professora se enganou a meio do poema, mas que, tal como o homem do leme, não desistiu de os preparar para enfrentarem todos os mostrengos que voariam sobre as suas cabeças nos mares tempestuosos da vida, muito para além das águas mansas da sala de aula.