Graciosa Gonçalves, Professora
graciosa.goncalves@sapo.pt
in “Ode Triunfal”, Álvaro de Campos
Recentemente, comemorei mais um aniversário. Calha sempre, portanto, naquele período que marca o início do ano letivo, com muita agitação e múltiplas tarefas. No entanto, este ano foi diferente. Obriguei-me a parar, naquele serão. Obriguei-me a fazer algo de memorável. Algo que ficasse carimbado em mim, com a tinta indelével das emoções fortes e inolvidáveis. E fui, ou melhor, fomos, porque a dois (com aquela pessoa que maneja o outro remo do barco que nos leva pelo mar desta vida), uma experiência destas ainda fazia mais sentido.
No palco, cordas e cabos de vários diâmetros envolvem-nos num ambiente marítimo. Fechando os olhos, dá para sentir a brisa no rosto, ouvir uma gaivota que passa rente às nossas cabeças ou respirar a maresia. De repente, as luzes morrem sobre o palco. Um homem vestido de preto observa o porto, ao amanhecer. Comanda um paquete que não chegou a entrar no cais. Lança-se, então, numa viagem interior, percorrendo, imaginariamente, a totalidade dos comportamentos próprios do ser humano e buscando, ora com ansiedade corrosiva, ora com mansidão repousante, “sentir tudo de todas as maneiras”. Nesta viagem, mistura de símbolos e de sensações, liberta-se, amiúde, das amarras da razão, percorrendo o riquíssimo imaginário marítimo português. Impossível não entender a contradição violenta de um homem que tenta estabelecer pontes entre diferentes identidades, à semelhança do que, tantas e tantas vezes, se passa no nosso interior, na voracidade da vida quotidiana de gente anónima. É o poema “Ode marítima” (para ler ou voltar a saborear), de Álvaro de Campos, o mais provocador/desafiante heterónimo de Fernando Pessoa, interpretado pelo ator Diogo Infante.
Durante setenta minutos, o poeta/ator transforma-se, ele próprio, no cais e no destino, dando corpo à viagem, tornando-a visível, quase palpável, para o leitor/espetador. A encenação está a cargo de Natália Luiza e a música original é de João Gil. Este, ocupa um nicho do palco e as notas musicais que se vão soltando a partir daí, alavancam as palavras, ora sussurradas, ora gritadas, que saem da boca do ator. Os olhos colam-se àquela figura. O ator grita em êxtase, cai desprotegido para logo se levantar com firmeza, despe o casaco, enraivecido, crispam-se-lhe as mãos de desespero, corre, pula de alegria, ajoelha suplicante e ergue-se maravilhado com o progresso que, simultaneamente, mata e vivifica. Trabalho com exigência física e mental de tamanho “XXL”. Senti-me sempre no palco, nunca na cadeira. Senti vontade de bater palmas, da primeira à última palavra, pois apesar do enorme esforço ali patente (designadamente de memorização do poema), o ator move-se e diz com tal naturalidade, que até parece fácil.
Diogo Infante despe-se de si próprio e vemos, a emergir dele, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, piratas que gritam (“Ahooooooy schoner ahoooooooy”), homens de negócios, mulheres, crianças e bebés de colo. Ele é todos e ninguém, ao mesmo tempo.
Para quem interessar, Diogo Infante e João Gil levam ao Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria, a “Ode Marítima”, a 30 de outubro, a partir das 21h30. Como o ator escreveu e muito bem na sua página de facebook, “Saber que estamos numa posição em que podemos ajudar e motivar o ensino da disciplina de português é algo que dá ainda mais motivação a quem trabalha textos como o “Sermão de Santo António aos Peixes” ou a “Ode Marítima”. É uma abordagem diferente que, pelo feedback, acaba por ser extremamente positiva para quem leciona e para quem aprende.”.
Repito, há muito tempo que não me sentava em frente a um palco para, imediatamente, me sentir no palco. A “sentir tudo de todas as maneiras”.