“Vitória, vitória, acabou a história!”

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Graciosa Gonçalves | Professora | graciosa.goncalves@sapo.pt

Com um brilho de estrelas no olhar, um menino de palmo e meio vem até junto de mim e diz ” Olha, foi a melhor história de sempre!”. Foi numa tarde de sábado, na Biblioteca Municipal de Pombal, a propósito do Dia das Bruxas/”Halloween”, após ter contado a história “ Que Grande Abóbora, Mimi!” (Valerie Thomas e Korky Paul) para um sorridente grupo de pais e filhos que tiveram a paciência e a audácia de partilhar comigo esta maravilhosa experiência de “faz-de-conta” em que aprendemos como os legumes são bons para a saúde, como trabalhar em equipa torna tudo mais fácil e como dar aos outros nos faz muito mais felizes. Foi também mais ou menos assim que cinquenta alunos do Centro Escolar de Abiul me receberam na semana passada. Digo “mais ou menos” porque aí foi possível juntar a tradição do “Halloween” (anglo-saxónica) à tradição muito nossa do “Pão por Deus”/”Tia dá bolinhos, por alma dos seus defuntinhos!”: a história que dramatizámos foi a mesma, mas as reações foram diferentes. É nessa diversidade que reside a grande mais-valia de contar histórias. Que delicioso foi ouvir um menino de 3 ou 4 anos a dizer que, na história da Cinderela, a abóbora se transforma “numa carroça”, ao contrário da história que ouvira em que, dela, por magia da bruxa, se forma um helicóptero! Todos quiseram que lhes pintasse bigodes nas caritas, a imitar o gato Rogério, uma das personagens da história que contei e, no fim, uma pequenita cheia de caracolitos e bochechinhas muito coradas ofereceu-me um saquinho com bolinhos, já para não falar dos que as professoras serviram no lanche que fechou a atividade. Senti-me, naqueles dois pedaços de duas tardes, a pessoa mais rica do mundo.
Esta alegria de partilhar histórias vem-me do berço, pois um(a) contador(a) foi, quase sempre, primeiro, um “ouvidor(a)”. Quantas narrativas fantásticas de bruxas e lobisomens que atacavam os viajantes na escuridão dos becos e dos caminhos de outros tempos em que só a fraca luz da candeia desafiava o breu, ouvi eu, sem pestanejar, num fascínio de menina, ao meu avô João e à minha tia Conceição, ao borralho quando o frio era de rachar, lá fora, ou à sombra fresca das figueiras do quintal nas tardes de calmaria!
Hoje toda a gente se queixa que não tem tempo. Essa coisa de ficar com os filhotes ou com os netos a contar ou a ler ou a rir dos castelos que se podem fazer com almofadas é algo que urge recuperar. Talvez roubando um pouco de tempo ao telemóvel, ao computador e à televisão. Talvez levantando os olhos dos ecrãs e deixando que os dedos redescubram o prazer do sereno folhear em vez do frenético digitar/teclar. Talvez quando algum tempo de qualidade nos permita, a nós, adultos, usufruir do curioso exercício de deixarmos os nossos filhos ler-nos uma aventura que muito gostem, ou inventarem uma narrativa a partir de um livro só com imagens (para os que ainda não sabem ler) ou, simplesmente, serem por cinco minutos o “Homem-Aranha” a lançar teias vibrantes que se colam no teto do quarto. É o reino da imaginação sem limites. Está provado, cientificamente, como todo este mecanismo criado em torno de uma história partilhada desenvolve laços duradouros e ferramentas emocionais preciosas para o presente e, acima de tudo, para o futuro da criança: a autoestima, a autonomia, a criatividade, a confiança, a alegria e a resiliência (essa tão ansiada capacidade para resistir às frustrações e às adversidades, superar e seguir em frente).
Desaparafusemo-nos, então, pelo menos de vez em quando, do comodismo da telenovela e do futebol. Libertemos os nossos olhos e a nossa atenção da escravidão dos ecrãs e arrisquemos a viver com as nossas crianças, serões de castelos, fadas e varinhas mágicas que, com um forte “Abracadabra”, nos tirem da triste condição de sapos ensonados e nos transformem, para grande alegria dos mais pequenos lá de casa, nos heróis que eles mais gostam. Porque urge escancarar as portas das gaiolas do mundo dito moderno e tecnologicamente desenvolvido, como afirma Dostoiévski, em Os Irmãos Karamazov: “Somos assim: sonhamos o voo mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.”